Traduzido por: Caio Forne
Revisado por: Matheus Bach
Willian Gillis
Introdução
Quando eu tinha seis anos, o meu pai anarquista me contrabandeou uma cópia de Jurassic Park, apesar das proibições da minha mãe. “Quando você souber ler, pode ler", ele disse, e em menos de um ano eu não apenas tinha aprendido cada palavra, como também já havia lido minha cópia gasta de cabo a rabo dezenas de vezes nas esperas entediantes em abrigos para sem-teto, cozinhas comunitárias e postos da assistência social. Cercado por uma distopia suja de concreto, eu lia, de olhos arregalados, a personagem Cassandra denunciar sistemas rígidos de controle como propensos a retornos decrescentes e à catástrofe inevitável — e descrever como caçadores-coletores trabalhavam muito menos e se divertiam bem mais. Eu estava viciado. Entre acampamentos sobrevivencialistas de fim de semana e panfletos do Zerzan na livraria de usados, o primitivismo me deu ótima munição contra a miríade de tiranias que poluíam a minha existência, da escola primária às esquinas da pobreza. “Essas também cairão”, eu me contentava. Eu brincava na pequena floresta atrás dos projetos governamentais de moradia em que depois começamos a morar, e detestava a corrupção que havia se infiltrado. Eu pegava concreto e quebrava janelas de carros com meus amigos.
Mas, principalmente, eu continuei a ler.
E gradualmente, lentamente, eu comecei a reconhecer outras dinâmicas envolvidas, outras possibilidades, e críticas ao poder mais sólidas ou embasadas. As afirmações de John e companhia começaram a azedar. Eu ia percebendo que elas eram menos e menos fundamentadas, bem definidas, ou completas. E, conforme os pontos com que eu concordava iam sendo colocados com uma retórica cada vez mais desonesta ou oportunista, eu me sentia traído. Eu comecei a conscientemente romper com o primitivismo enquanto lutava nas ruas de Seattle em 1999. Eu me tornei muito audacioso pra me contentar com os limitados valores, planos e estratégias do primitivismo, e era evidente que não haveria volta.
O mesmo amor insaciável pelo universo natural que fez com que eu me apaixonasse pelas florestas de Cascadia, acabou me levando à física teórica. E quando me lembro do primitivismo o que eu vejo agora nunca pareceu tão frio e irreconhecível. Uns caras gargalhando e incentivando a morte de bilhões. Anti-intelectualismo aberto e argumentos inacreditavelmente ruins. Sistemas morais grosseiros, bem como más interpretações de registros antropológicos e arqueológicos. Claro que há exceções — de vez em quando aparece alguém intelectualmente atento, analítico e sincero, cansado e fazendo o seu plano B. Mas o Primitivismo como um todo? Não consigo ver como o surgimento de cultos pseudo-Maoístas autoritários, o John se refugiando para abraçar abertamente o ‘espiritualismo’, e os idiotas assassinos que acham que jogar a palavra ‘modernismo’ serve como argumento, possam estar desconectados da podridão de fundo.
Eu escrevi sobre esse assunto uma década atrás[1], mas o meu confronto foi direcionado às formulações teóricas do primitivismo que eu achei mais essenciais na época. Por algum motivo – e talvez para pior – a maioria dessas correntes desde então se extinguiram. Hoje o panorama é ainda mais ideologicamente fraturado e muitos regrediram a um nebuloso posicionamento “anti-civ” que herda a maior parte da estrutura primitivista enquanto se mantém vaga o suficiente para se esquivar da maioria das críticas. Mas ao mesmo tempo que aqueles que se identificam como anti-civ podem romper individualmente com alguns aspectos do primitivismo, sem nenhuma das estruturas ou narrativas do primitivismo, não seria possível um posicionamento anti-civ.
Fundamental ao próprio termo “anti-civ” é uma noção ampla de “civilização” que é intensamente problemática e serve para narrativas muito simplistas. O primitivismo é cheio deste tipo de acenos irreducionistas que sonham com grandes monstros a partir de associações vagas e dão a eles a agência de forças mágicas que atuam na macroescala, moldando cada pormenor. Seguindo uma abordagem que Ellul chamou abertamente de “monismo”, o primitivismo se recusa a considerar esses fantasmas separadamente, a reconhecer qualquer conflito ou amplitude na configuração de suas dinâmicas constituintes. Tudo é visto como inextricavelmente tecido num todo que age de acordo com uma narrativa simples. Uma tal forma conspiratória de pensar é basicamente só dobrar a aposta no Marxismo, substituindo “capitalismo” por monstros ainda mais amplos e mais abstratos, “tecnologia” e “civilização”. Esses contos geralmente são explicitamente anti-radicais no seu desdém por chegar nas raízes da questão.
Essa tendência reacionária leva ao nivelamento de apelos normativos em termos de noções macroscópicas amplas ou ondas de intuição ao invés de argumentos éticos concretamente embasados. Primitivismo é mais uma história do que uma análise. E para funcionar ele assim requer uma poda de complicações, nunca pesquisando para além do quadro teórico ou dos termos da narrativa macroscópica. Ele alegremente coleta pilhas convenientes de factoides, alegações, e até pontos concretos. Mas já que o que mais importa são as noções amplas, qualquer crítica específica que alguém possa fazer a alguma dada afirmação é facilmente desviada com novas afirmações. Enfrentar o primitivismo efetivamente primeiro requer adentrar o nível de generalidade em que ele opera – criticando classes, categorias, ou tipos de argumentos dentro do discurso primitivista para não deixar espaço para recuo, para encurralar qualquer argumento específico de todos os lados. Só depois disso podemos entrar nos detalhes sobre as possibilidades e dinâmicas de inúmeras questões particulares, como a mineração de coltan.
Tecnologia
A definição convencional de tecnologia é basicamente “jeitos de fazer coisas”. E então isso inclui linguagem, conhecimento, equações, táticas, heurística, ferramentas, e até mesmo os nossos corpos. Qualquer meio ou caminho possível pelo qual alguém pode agir ou conseguir alguma coisa.
Porém no uso comum “tecnologia” acabou acumulando associações mais fortes com um subconjunto destes meios – iPods e escavadeiras ao invés de exercícios de balé ou cordas vocais. Essa “tecnologia” é um estranho pacote de coisas, mais uma estética de objetos físicos do que qualquer coisa substancial. A coisa é cinza? Tem metal nela? Tem quinas?
Existem muitos novos meios que se desenvolveram desde a industrialização, mas pessoas comuns não tendem a se referir a quadros brancos ou yoga como “tecnologias”. Ao invés disso, há uma narrativa muito específica de progresso que é amplamente vendida para nós pelos nossos governantes e ela coloca coisas como notebooks e carros como o ápice de todas as tecnologias – ao ponto de que outros meios de fazer as coisas são implicitamente ridicularizados. Da mesma forma embora “máquina” possa significar praticamente qualquer coisa com subdinâmicas perceptíveis que usam energia para fazer coisas, nós não tendemos a considerar patos-reais ou arminhas de água como “máquinas”. Existe uma teleologia implícita contida na forma com que usamos esses termos.
Primitivistas frequentemente usam essa noção ou narrativa mais vaga como seu ponto de partida ao invés da definição mais ampla porém mais concreta. E eles buscaram diferentes definições de tecnologia ao lado de diferentes análises para testar e explicar melhor essas associações. Mas eu não tenho certeza de que em última análise existe qualquer coerência ou conteúdo no viés popular no nosso uso. Há um senso de que nós “identificamos a tecnologia quando a vemos” e ainda assim isso parece apelar para nada mais do que uma corrente estética de uma linhagem bastante aleatória. A noção popular é arbitrária de várias maneiras que estão se tornando cada vez mais inescapáveis e parece mesmo que não temos escolha a não ser largá-la em prol da mais precisa e embasada – ainda que mais ampla – definição de meios (algo que é impossível de rejeitar totalmente sem rejeitar toda liberdade para agir).
Ao passo que pensadores específicos construíram estruturas específicas de afirmações, em geral eles tendem a seguir duas abordagens distintas ao desenvolver definições alternativas de “tecnologia” que são mais estreitas do que “ferramentas” ou “meios”. Esses dois loci de definições alternativas ainda são bastante influentes ao pensamento anti-civ, e examiná-los é altamente ilustrativo.
Rigidez
A primeira dessas abordagens para definir “tecnologia” é apelar à intuição, popular em nossa época, de uma dicotomia entre seres vivos e não-vivos.
Algumas coisas são “vivas”, outras coisas não são. Isso é uma regra prática comum e biólogos pelo menos por algum tempo se esforçaram para fazer disso uma taxonomia precisa. Mas a categoria de “vivo” é uma intuição notoriamente problemática e provavelmente sem sentido (os vírus têm vida? Príons? E as estrelas? Por que não deveríamos interpretar que cristais e pedras têm vida? Onde os limites entre organismos deveriam ser estabelecidos? Entre eles e seu meio ambiente?)
Por outro lado, ao contrário de “vivo”, há esperança de que a nossa noção de “orgânico” possa realmente ser preservada. Podemos às vezes fazer uma distinção substancial, que considera flexibilidade ou fluidez, e rigidez ou fragilidade. E certamente estruturas desenvolvidas estupidamente como estradas e carros são extremamente rígidas e frágeis. Nós sempre tivemos mais tecnologias orgânicas, mas é certamente verdade que tem havido pressões notáveis por tecnologias excessivamente rígidas, particularmente na era industrial. A maior parte do que é invocado pelo termo “civilização industrial” são enormes projetos de infraestrutura e operações de pouca ou nenhuma adaptabilidade. O capitalismo moderno depende da ausência de sinais dinâmicos de preço e redistribuição; grandes e imponentes instituições políticas e econômicas dependem de rigidez, a manutenção perpétua de certas condições, de forma que elas não precisem calcular nem se ajustar a condições mutáveis, sejam elas ecológicas ou humanas. E somas inacreditáveis de violência e energia humana foram gastos para manter certas condições arbitrárias – demanda, preço, etc. A rigidez de grandes projetos de infraestrutura como o sistema rodoviário, os diversos subsídios de combustíveis fósseis, etc, dão suporte a essa paisagem social. Rigidez é certamente típica de qualquer sistema propício a relações de poder, e quanto mais rígido mais potencialmente frágil.
É fácil associar isso às engrenagens e à argamassa simples e rígidas das primeiras fábricas industriais. Quando dizemos que algo é “frio e mecânico” o que queremos dizer geralmente é que ele é rígido e tem uma estrutura excessivamente simples ao invés de ser ricamente complexo, envolvente e adaptativo.
Ainda assim a esmagadora tendência nos dias de hoje – mesmo que seja tarde demais – é a de fazer com que as nossas ferramentas sejam mais fluidamente reconfiguráveis. Computação de uso geral sempre foi no fundo uma tentativa de escapar da rigidez dos mecanismos de configuração única. E agora o grande movimento é fazer com que o hardware dos computadores e outras ferramentas seja mais fluido tanto nas suas funcionalidades quanto na sua composição. De forma que possamos construí-los ou desfazê-los e reconstruí-los instantaneamente em nossa garagem ou hackerspace local de formas mais descentralizadas e “faça você mesmo”.
Da mesma forma o impulso primitivista para fazer oposição à biotecnologia não combina, em última análise, com uma definição de tecnologia enquanto rigidez. Apesar de os seres humanos sempre terem usado biotecnologia desde o cultivo de plantas muito antes da agricultura até o enxerto de árvores, desenvolvimentos recentes nos deram muito mais conhecimento e amplitude sobre como reconfigurar sistemas biológicos, incluindo coisas como biohackers anarquistas fazendo com que leveduras produzam proteínas essenciais do queijo sem escravizar vacas. Embora algumas empresas multinacionais possam sem dúvida encorajar seus engenheiros e tecnólogos a abordar a biotecnologia de uma perspectiva rígida – desajeitadamente costurando genes aleatórios com pouquíssimo conhecimento ou apreciação por muito contexto para além da imediata tentativa e erro – muitas claramente não fazem isso. Existe um problema profundo aqui: Mais graus de liberdade na manipulação e reconfiguração – na ação – é a definição de fluidez orgânica, então de maneira nada trivial nosso ímpeto de entender melhor as coisas e de ter mais meios de fazer as coisas é em última análise uma pressão por mais ferramentas orgânicas. O desenvolvimento tecnológico – no sentido de invenções que expandem nosso conjunto de ferramentas a serem escolhidas – pode claramente ser alinhado numa direção positiva. De fato, quando tecnologias mais velhas ou mais simples não são fortemente pisadas por estruturas de poder e novas tecnologias não são censuradas ou filtradas, qualquer nova invenção agrega ao conjunto de meios possíveis que temos, e assim inerentemente expande a fluidez das nossas opções.
Seguindo esse argumento até o fim, sinceramente, a conclusão seria a de que nós precisamos de ecossistemas de ferramentas mais amplos e diversos, não menores. De fato é possível rapidamente perceber que o pecado da rigidez de nossa infraestrutura e dos nossos sistemas sociais é a forma com que eles suprimem florescimento tecnológico.
Complexidade
Porém a segunda maior abordagem primitivista para definir “tecnologia” é à primeira vista quase o exato oposto da dicotomia orgânico/inorgânico: Nessa lente o que é focado como problema é a complexidade de várias ferramentas e as infraestruturas ou o contexto social em que elas estão inseridas.
A propósito: eu sou velho o suficiente para me lembrar de quando a primária crítica anarquista verde à nossa tecnologia era a de que ela era muito simples ou entediante e exigia muito foco rígido (aquela época tinha todo tipo de slogans zoados como “apenas as máquinas não têm TDAH” ou “a civilização está nos tornando autistas” que nunca colariam hoje em dia). Na última década é claro o script se inverteu quase completamente; agora a “tecnologia” é frequentemente atacada por ser inerentemente muito envolvente, muito complexa, e muito sem foco. Em vez de desligar a mente na frente da TV agora estamos rapidamente indo e voltando entre a wikipédia e mensagens de texto nos nossos celulares. Certamente ambas as atitudes representam uma resistência significativa contra tendências reais nas ferramentas e nas normas de suas épocas, mas o salto de definir tecnologia “inerentemente” nesses termos é um pouco frustrante.
No entanto existe algum fundamento nas críticas à complexidade dos sistemas que usamos. Cérebros humanos são surpreendentemente complexos e muito maleáveis, mas existem limites arquitetônicos ao que nós conseguimos processar ou manter sob atenção consciente, isso sem falar da velocidade desse processamento. Todos nós já experimentamos interfaces ruins, muito bagunçadas em um aplicativo ou até apresentações pedagógicas ruins de um assunto que exige uma enorme reconfiguração mental nos nossos cérebros para que seja processado. Às vezes isso pode ser como um alongamento mental — em alguns contextos um exercício saudável, em outros algo apenas neutro ou irrelevante. Mas às vezes realmente entender ou diligentemente se envolver num sistema está para além da nossa capacidade cognitiva atual – e às vezes é até para além de qualquer supercomputador viável. As ferramentas criptográficas que foram um sucesso vertiginoso na luta contra a Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos apenas são possíveis por causa de limites computacionais inescapáveis embutidos no nosso universo pela matemática e pela física. Se criarmos um sistema suficientemente complexo, ele estará para além da capacidade de qualquer autoridade central ou supercomputador de compreendê-lo completamente, muito menos controlá-lo. Em muitos aspectos isso se aplica à nossa sociedade atual.
Um bordão comum no discurso anti-civ é o de que sociedades de larga escala são antinaturais e impraticáveis porque nós não podemos conhecer todo mundo da mesma forma que poderíamos em pequenas tribos. Os relacionamentos e dramas interpessoais em jogo numa tribo de umas cem pessoas podem ser complexos, mas quando se trata de milhares ou milhões, torna-se impossível. Isso é verdade, mas é mais uma observação sobre os limites da nossa capacidade de processamento social do que uma crítica à tecnologia. É uma questão de escala, não de tipo.
O problema não é a tecnologia em si, mas a forma como ela é usada e a escala em que é aplicada. Em vez de rejeitar a tecnologia, deveríamos buscar formas de usá-la para criar sistemas mais flexíveis, adaptáveis e descentralizados. A complexidade pode ser uma vantagem quando usada para proteger a privacidade e a liberdade individual, como no caso das ferramentas criptográficas.
O primitivismo, ao focar na rejeição da tecnologia e da civilização, perde de vista as oportunidades de usar a tecnologia para alcançar objetivos anarquistas. Em vez de buscar um retorno a um passado idealizado, deveríamos nos concentrar em construir um futuro onde a tecnologia seja uma ferramenta para a libertação, não para a dominação.
Conclusão
O pensamento primitivista e anti-civ, embora bem-intencionado em sua crítica à civilização industrial, falha em oferecer uma análise coerente e soluções práticas. Sua dependência de noções vagas e irreducionistas de “tecnologia” e “civilização” leva a uma visão simplista e reacionária. Em vez de rejeitar a tecnologia, devemos buscar formas de usá-la para criar um mundo mais livre e justo.
O verdadeiro desafio não é abandonar a tecnologia, mas sim transformá-la em uma ferramenta para a libertação, em vez de dominação. Isso exige uma compreensão mais profunda da tecnologia e de suas implicações, bem como um compromisso com a criação de sistemas que respeitem a autonomia individual e a diversidade ecológica.
O futuro não está em um retorno a um passado idealizado, mas em um avanço em direção a um mundo onde a tecnologia seja usada para empoderar as pessoas e proteger o planeta.
Notas
[1] A referência original do autor foi mencionada no texto. Para mais detalhes, consulte a publicação original de William Gillis.
Comments