Politizando as Páginas de Segredos Universitários

Table Of Contents

Revisado por: Vinicius Yaunner

Nota do revisor: Esse texto é um trabalho sobre liberdade de expressão e anônima de grupos basicamente.

Kael Avila

Graphé paranomon é um termo grego que se referia à responsabilidade dos cidadãos de assumir seus discursos. Qualquer um poderia ser processado e efetivamente julgado por proferir uma proposta ilegal. Como a jurisdição das cidades-estados gregas antigas formaram a base dos estudos de direito, ideias como essa em relação ao anonimato continuaram firme, até então o surgimento da internet. A internet surgiu durante a guerra, porém foi popularizada como um meio de comunicação livre entre hackers, ativistas e acadêmicos, projetado para o não rastreamento de personalidades e uso coletivo. A internet, em si, foi primeiramente moldada exatamente para garantir o anonimato e garantir livre expressão. Porém com o passar do tempo, o “mundo cibernético” foi adquirindo as mesmas características da socialização do mundo real, ou como é chamado na internet, IRL (in real life), isso inclui a dominação corporativista e o combate ao anonimato. O cibermundo funciona como se tivessem operando duas máquinas ao mesmo tempo, a que provém o anonimato e exclui dados de rastreamento, permitindo a livre expressão, e a que restringe e caça o rastreamento, limita a livre expressão. Um dos resultados dessa batalha foi o aplicativo Secrets, lançado mundialmente em 2015, desenvolvida pela Google e pelo Facebook. O aplicativo marcou a socialização dos GenZ, prometia identidade nula, onde você postava e todos seus amigos do Facebook poderiam ver e responder também com identidade anulada. O anonimato era garantido e resultado foi traumatizante, durante o tempo de funcionamento no Brasil, grupos minoritários foram humilhados; ideias racistas, sexistas e heterossexistas foram livremente espalhadas sem nenhuma consequência aos ditadores anônimos desses discursos. Apesar do aplicativo fechar, universidades e locais físicos de socialização dos GenZ continuaram e reinventaram a prática do Secrets e criaram as páginas de Segredos. Essas páginas podem ser autorreguladas ou terem figuras específicas que filtram e moderam os segredos, que são mensagens enviadas em um formulário online que garantem o anonimato dos discursastes, e postam os segredos em páginas e/ou grupos do Facebook.

Ivan Illich, pedagogo da década de 70, definia o conceito de teia educacional como as relações de socialização do ser humano que o educam, consciente ou inconscientemente. Podemos considerar, por exemplo, o meio universitário como uma teia educacional, com vários indivíduos separados de seu antigo meio de socialização originário e família se relacionando com outras pessoas que passam por processos similares. Podemos considerar, também, as páginas de segredos universitários do Facebook como uma ferramenta para o processo educacional nessa teia universitária. A página de segredos, em suma, foi um espaço que permitiu estes mesmos grupos minoritários, que foram antes humilhados, a educar. Segredos sobre pronomes neutros de tratamento, significado das siglas LGBTQ+, tratamentos respeitosos à mulheres e questões sobre sexualidade e raça são amplamente discutidos nessas páginas. Os segredos que apresentam conteúdo desrespeitoso são amplamente, também, rejeitados pelos curtidores e moderadoes das páginas.

Paulo Freire, colega e crítico de Ivan Illich, falava sobre a convivência dos dessemelhantes como processo educacional. O autor pós-moderno falava que uma leitura crítica do mundo incluía seu debate. Incluía o dizer de verdades que as classes dominantes tentam esconder. Verdades que incluem mas não se limitam à: mulheres dizendo sobre como se configura uma relação respeitosa; LGBTQ+ dizendo sobre como preferem ser chamados; ativistas do movimento negro ressaltando os processos racistas da sociedade e pessoas que participam do movimento BDSM falando sobre consentimento. Podemos então considerar, para além de um simples processo educacional, os segredos universitários como processos educacionais que reage contra a opressão e educa de forma libertadora. Segundo Freire:

Aprender e ensinar fazem parte da existência humana, histórica e social, como dela fazem parte a criação, a invenção, a linguagem, o amor, o ódio, o espanto, o medo, o desejo, a atração pelo risco, a fé, a dúvida, a curiosidade, a arte, a magia, a ciência, a tecnologia.

Freire disserta sobre o conceito de cidade educacional. A cidade educa principalmente porque você convive — e constrói ou desconstrói — ela. Antes de tudo, o ambiente universitário pode se configurar como uma cidade educacional, mas para além disso, o ambiente cibernético que conecta os estudantes de uma universidade também pode se configurar como uma cidade ciber-educacional. A teia educacional cibernética, assim como a página de segredos, os ambientes de redes sociais, grupos de universidade é real, tem consequências psicológicas, educacionais e sociais reais. Parafraseando Paulo Freire¹: O que podemos chamar de calorosamente de ciberdade, se faz educativa pela necessidade de educar, de apender, de ensinar, de conhecer, de criar, de sonhar, de imaginar que todos nós, mulheres, homens e não-bináries, impregnamos em seus Instagram, seus Spotted, seus grupos, seus RPG, impregnamos nas suas redes sociais, seus Twitter, deixando tudo o selo de certo tempo, o estilo, o gosto de certa época. A ciberdade é cultura, criação, não só do que fazemos nela e dela, pelo que criamos nela e com ela, mas também é cultura pela própria mirada estética ou de espanto, gratuita, que lhe damos. A ciberdade somos nós e nós somos a ciberdade. Mas não podemos esquecer de que o que somos guarda algo que foi e que nos chega pela continuidade histórica de que não podemos escapar, mas sobre que podemos trabalhar, e pelas marcas culturais que herdamos.

Muito do que falamos sobre os efeitos das páginas de segredos, falamos também de uma educação no mínimo desinstitucionalizada. Ivan Illich definia uma educação escolarizada (ou institucional) aquela que era formada por um currículo, divisão etária e figura autoritária do professor. No caso das páginas de segredos, não há nenhum indício dos três. É feito por alunos, para alunos. A educação ocorre naturalmente quando se surge efeitos de deseducação em algum assunto específico. Se há algo racista, haverá a educação antirracista. Se há algo sexista, haverá a educação feminista. Se há algo hetero-cissexista, haverá a educação queer. A educação, em outras palavras, é fluida e acompanha tanto a discussão quanto a necessidade, e ainda é consciente e direcionada. Quem educa sabe que está educando, e o educando sabe que está sendo educado. A internet oferece a oportunidade do ser humano exercer de maneira mais fácil possível seu poder de libertação.

A tradição de segredos universitários a dar voz às culturas minoritárias e oprimidas, tornando-as mais comuns e mainstream se revelam como a mudança da cultura em si. Uma cultura com protagonismo das minorias sociais que revolucionam tanto a sociedade universitária em geral como a cultura e importância das próprias minorias em si. Muito dificilmente, há dez anos atrás, uma pessoa com privilégios sociais, econômicos e raciais poderia se relacionar tão facilmente com o discurso das minorias sociais, econômicas e raciais tão presencialmente como ocorre na difusão dos segredos. Apple dizia que se o saber não liberta, ele justifica servidão. O ensino escolarizado não abre espaço para discursos de minorias pois está ocupado ditando a cultura dominante, alienando e dominando o saber. É um sistema que oprime as culturas à uma só. Apenas uma válida. Daí entra a importância desses espaços de educação coletivos, gratuitos e diversificados: a variação e debate entre culturas diferentes transformam a cultura de um ambiente e tem potencial libertador. Se opondo à definição de educação escolarizada de Apple, a educação para de se definir como adaptação nesses espaços, e se define, por essência, em transformação desses mesmos espaços, criando tanto o ser humano novo, quanto a ciberdade nova. O marginalizado passa de ser marginal, e diferente das tentativas da sociedade de o transformar em servidor do sistema, ele vira, enfim, o educador.

“A rebelião de grande parte da juventude atual, contra a escola, talvez radique numa consciência, cada vez mais clara de que o sistema só lhe permite participar da construção do mundo, quando a considerar preparada para fazê-lo nas exatas medidas de seus interesses, isto é, dos interesses dos grupos e classes dominantes. O ensino é, assim, técnica hábil para conformar e uniformizar. Ao contrário do aprendizado como método de liberação e auto-configuração, descobrimento histórico de valores de humanização de invenção do homem novo.” (APPLE, Michael, 1986)

Referências principais:

APPLE, Michael W. CLASSE, CULTURA E CURRÍCULO. Educação & Realidade, Vol. 11 N° 1. Porto Alegre, RS, Editora da Universidade de Caxias do Sul. p. 19–34, janeiro/junho de 1986.

FREIRE, Paulo. Educação permanente e as cidades educativas. Política e Educação. São Paulo: Cortez Editora, 7ª edição, 2003. GONÇALVES E SILVA, Petronilha Beatriz et al. PROCESSOS EDUCATIVOS EM PRÁTICAS SOCIAIS: REFLEXÕES TEÓRICAS E METODOLÓGICAS SOBRE PESQUISA EDUCACIONAL EM ESPAÇOS SOCIAIS. 32ª Reunião Anual da Anped, 2009. Disponível em: http://www.anped.org.br/biblioteca/item/processos-educativos-em-praticas-sociais-reflexoesteoricas-e-metodologicas-sobre . Acesso em: 17 nov. 2019.

ILLICH, Ivan. Sociedade sem escolas. Petrópolis, RJ. Editora Vozes. 7 ed. 1985.

KUNDE, Bárbara Michele Morais; REIS, Jorge Renato dos. APLICATIVO SECRET: SOMOS TODOS INVISÍVEIS? UM OLHAR CONSTITUCIONAL SOBRE O DIÁLOGO ENTRE ANONIMATO E LIBERDADE DE EXPRESSÃO NO AMBIENTE VIRTUAL. Revista Eletrônica do Curso de Direito da UFSM, Santa Maria, RS, v. 11, n. 1, p. 226–248, jun. 2016. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/revistadireito/article/view/20731 .

SILVEIRA, Sérgio Amadeu da. Comunicação & Sociedade. Redes cibernéticas e tecnologias do anonimato, Grupo de Trabalho “Comunicação e Cibercultura”, do XVIII Encontro da Compós, na PUC-MG, Belo Horizonte, MG, p. 113–134, junho 2009. Disponível em: https://www.metodista.br/revistas/revistas-metodista/index.php/CSO/article/view/856/907 .


A Proibição Ainda Não Funciona
Uma pequena introdução ao agorismo e ao Samuel Edward Konkin III

Comments