O Manifesto De Uma Hacker

Tradução por: Vinicius Yaunner
Revisão: Cypherpunks Brasil

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Nota do tradutor: Esse não é a tradução do A Hacker Manifesto mas do A Hacker’s manifesto, uma versão mais curta produzida para o formato de zine pela anarchotranshuman.org, caso queiram saber mais sobre a autora recomendo o texto do BaixaCultura sobre ela.

McKenzie Wark

Manifestação

Há uma ambiguidade assustando o mundo, a ambiguidade da abstração. As fortunas de estados e exércitos, empresas e comunidades dependem disso. Todas as classes em conflito – os latifundiários e agricultores, os trabalhadores e os capitalistas – reverenciam, mas temem a abstração implacável do mundo do qual suas fortunas ainda dependem. Todas as classes menos uma. A classe hacker.

Qualquer que seja o código que hackeamos, seja linguagem de programação, linguagem poética, matemática ou música, curvas ou cores, criamos a possibilidade de coisas novas entrarem no mundo. Nem sempre grandes coisas, ou mesmo coisas boas, mas coisas novas. Na arte, na ciência, na filosofia e na cultura, em qualquer produção de conhecimento onde os dados podem ser coletados, onde a informação pode ser extraída, e onde nessa informação são produzidas novas possibilidades para o mundo, há hackers hackeando o novo para fora do velho. Enquanto os hackers criam esses novos mundos, nós não temos posse dele. Aquilo que criamos está hipotecado a outros, e aos interesses de outros, a estados e corporações que controlam os meios para fazer mundos que só nós descobrimos. Nós não possuímos o que produzimos – ele nos possui.

E ainda não sabemos bem quem somos. Embora reconheçamos nossa existência distinta como um grupo, como programadores, como artistas, escritores, cientistas ou músicos, raramente vemos essas formas de nos representar como meros fragmentos de uma experiência de classe que ainda luta para se expressar como ela mesma, como expressões do processo de produção de abstração no mundo. Geeks e freaks tornam-se o que são negativamente, através de sua exclusão por outros. Os hackers são uma classe, mas uma classe abstrata, uma classe que ainda não se hackeou na existência manifestada como ela mesma.

Abstração

A abstração pode ser descoberta ou produzida, pode ser material ou imaterial, mas a abstração é o que todo hacker produz e afirma. Abstrair é construir um plano sobre o qual assuntos diferentes e não relacionados podem ser trazidos para muitas relações possíveis. É através do abstrato que o virtual é identificado, produzido e divulgado. O virtual não é apenas o potencial latente nas matérias, é o potencial do potencial. Hackear é produzir ou aplicar o abstrato à informação e expressar a possibilidade de novos mundos.

Todas as abstrações são abstrações da natureza. Abstrair é expressar a virtualidade da natureza, tornar conhecida alguma instância de suas múltiplas possibilidades, atualizar uma relação a partir da relacionalidade infinita. As abstrações liberam o potencial da matéria física. E, no entanto, a abstração depende de algo que tem uma existência independente da matéria física – a informação. A informação não é menos real que a matéria física e depende dela para existir. Como a informação não pode existir de forma pura e imaterial, a classe hacker também não. Necessariamente deve lidar com uma classe dominante que possui os meios materiais de extrair ou distribuir informação, ou com uma classe produtora que extrai e distribui. O interesse de classe dos hackers está em liberar a informação de suas restrições materiais.

À medida que a abstração da propriedade privada foi estendida à informação, ela produziu a classe hacker como uma classe. Os hackers devem vender sua capacidade de abstração para uma classe que possui os meios de produção, a classe vetorialista – a classe dominante emergente de nosso tempo. A classe vetorialista está travando uma luta intensa para desapropriar os hackers de sua propriedade intelectual.

Patentes e direitos autorais acabam todos nas mãos, não de seus criadores, mas da classe vetorialista que possui os meios de perceber o valor dessas abstrações. A classe vetorialista luta para monopolizar a abstração. Os hackers encontram-se despossuídos tanto individualmente quanto como classe. Os hackers vêm aos poucos lutar contra as formas particulares em que a abstração é mercantilizada e transformada em propriedade privada da classe vetorialista. Os hackers vêm para lutar coletivamente contra as acusações usurárias que os vetorialistas extorquem pelo acesso às informações que os hackers produzem coletivamente, mas que os vetorialistas coletivamente adquirem. Os hackers vêm como uma classe para reconhecer que seu interesse de classe é melhor expresso através da luta para libertar a produção de abstração não apenas dos grilhões particulares desta ou daquela forma de propriedade, mas para abstrair a própria forma de propriedade.

O que torna nossos tempos diferentes é que o que agora aparece no horizonte é a possibilidade de uma sociedade finalmente liberta da necessidade, tanto real quanto imaginada, por uma explosão de inovações abstratas. Abstração com o potencial de quebrar de uma vez por todas os grilhões que prendem o hacking a interesses de classe ultrapassados e regressivos. Já passou o tempo em que os hackers devem se unir a todas as classes produtoras do mundo – para liberar recursos produtivos e inventivos do mito da escassez. “O mundo já possui o sonho de um tempo cuja consciência deve agora possuir para realmente vivê-lo.”

Produção

A produção produz todas as coisas e todos os produtores de coisas. A produção produz não apenas o objeto do processo de produção, mas também o produtor como sujeito. Hacking é a produção da produção. O hack produz uma produção de novo tipo, que tem como resultado um produto singular e único, e um produtor singular e único. Todo hacker é ao mesmo tempo produtor e produto do hack, e emerge em sua singularidade como memória do hack como processo.

A produção se dá a partir de um hack prévio que dá à produção sua identidade formal, social, repetível e reprodutível. Toda produção é um hack formalizado e repetido a partir de sua representação. Produzir é repetir; hackear, diferenciar.

O hack produz um excedente útil e um inútil, embora a utilidade de qualquer excedente seja social e historicamente determinada. O excedente útil vai para a expansão do reino da liberdade arrancada da necessidade. O excedente inútil é o excedente da própria liberdade, a margem da produção livre não constrangida pela produção por necessidade.

A produção de um excedente cria a possibilidade de expansão da liberdade da necessidade. Mas na sociedade de classes, a produção de um excedente também cria novas necessidades. A dominação de classe assume a forma da captura do potencial produtivo da sociedade e seu aproveitamento para a produção, não da liberdade, mas da própria dominação de classe. A classe dominante subordina o hack à produção de formas de produção que podem ser aproveitadas para aumentar o poder de classe e a supressão ou marginalização de outras formas de hacking. O que as classes produtoras – fazendeiros, trabalhadores e hackers – têm em comum é o interesse em libertar a produção de sua subordinação às classes dominantes que transformam a produção na produção de novas necessidades, que arrancam a escravidão do excedente. Os elementos de uma produtividade livre já existem de forma atomizada, nas classes produtivas. O que resta é a liberação de sua virtualidade.

Classe

A luta de classes, em seus intermináveis reveses, reviravoltas e compromissos, retorna repetidas vezes à questão não respondida – propriedade – e as classes em conflito retornam repetidamente com novas respostas. A classe trabalhadora questionou a necessidade da propriedade privada, e o partido comunista surgiu, alegando responder aos desejos da classe trabalhadora. A resposta, expressa no Manifesto Comunista, foi “centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado”. Mas tornar o Estado o monopolista da propriedade só produziu uma nova classe dominante e uma nova e mais brutal luta de classes. Mas talvez essa não tenha sido a resposta final, e o curso da luta de classes ainda não terminou. Talvez haja outra classe que possa colocar a questão da propriedade de uma nova maneira – e oferecer novas respostas para quebrar o monopólio das classes dominantes sobre a propriedade.

Há uma dinâmica de classe conduzindo cada estágio do desenvolvimento do mundo vetorial no qual nos encontramos agora. A classe pastoralista dispersa a grande massa de camponeses que tradicionalmente trabalhavam a terra sob o domínio dos senhores feudais. Os pastores suplantam os latifundiários feudais, liberando a produtividade da terra que reivindicam como propriedade privada. À medida que novas formas de abstração tornam possível produzir um excedente da terra com cada vez menos agricultores, os pastores os afastam de suas terras, privando-os de seu sustento. Agricultores despossuídos procuram trabalho e um novo lar nas cidades. Aqui os agricultores se tornam trabalhadores, pois o capital os coloca para trabalhar em suas fábricas. O capital como propriedade dá origem a uma classe de capitalistas que possuem os meios de produção e a uma classe de trabalhadores, despossuídos deles – e por eles. Agricultores despossuídos tornam-se trabalhadores, apenas para serem desapropriados novamente. Tendo perdido suas terras, eles perdem por sua vez sua cultura. O capital produz em suas fábricas não apenas as necessidades da existência, mas um modo de vida que espera que seus trabalhadores consumam. A vida mercantilizada despoja o trabalhador da informação tradicionalmente passada fora do domínio da propriedade privada como cultura, como presente de uma geração para a próxima, e a substitui por informação em forma mercantilizada.

A informação, como a terra ou o capital, torna-se uma forma de propriedade monopolizada por uma classe de vetorialistas, assim chamados porque controlam os vetores ao longo dos quais a informação é abstraída, assim como os capitalistas controlam os meios materiais com os quais os bens são produzidos e os pastores a terra com qual alimento é produzido. A informação circulava na cultura da classe trabalhadora como propriedade social de todos. Mas quando a informação, por sua vez, se torna uma forma de propriedade privada, os trabalhadores são despossuídos dela e devem comprar sua própria cultura de volta de seus proprietários, a classe vetorialista. Todo o tempo, o próprio tempo, torna-se uma experiência mercantilizada.

Os vetoralistas tentam quebrar o monopólio do capital sobre o processo de produção e subordinar a produção de bens à circulação da informação. As corporações dirigentes se despojam de sua capacidade produtiva, pois esta não é mais uma fonte de poder. Seu poder está em monopolizar a propriedade intelectual – patentes e marcas – e os meios de reproduzir seu valor – os vetores de comunicação. A privatização da informação torna-se o aspecto dominante, e não subsidiário, da vida mercantilizada. À medida que a propriedade privada avança da terra para o capital e para a informação, a própria propriedade se torna mais abstrata. Assim como o capital liberta a terra de sua fixidez espacial, a informação como propriedade libera o capital de sua fixidez em um objeto particular. A classe hacker, produtora de novas abstrações, torna-se mais importante para cada classe dominante sucessiva, pois cada uma depende cada vez mais da informação como recurso.

A classe hacker surge da transformação da informação em propriedade, na forma de propriedade intelectual, incluindo patentes, marcas, direitos autorais e direito moral dos autores. A classe hacker é a classe com a capacidade de criar não apenas novos tipos de objetos e sujeitos no mundo, não apenas novos tipos de forma de propriedade em que podem ser representados, mas novos tipos de relação além da forma de propriedade. A formação da classe hacker como classe vem justamente neste momento em que a liberdade da necessidade e da dominação de classe aparece no horizonte como uma possibilidade.

Propriedade

A propriedade constitui um plano abstrato sobre o qual todas as coisas podem ser coisas com uma qualidade em comum, a qualidade da propriedade. A terra é a principal forma de propriedade. Os pastores adquirem terras como propriedade privada por meio da expropriação forçada de camponeses que antes compartilhavam uma parte dela em forma de propriedade pública. O capital é a forma secundária de propriedade, a privatização dos ativos produtivos na forma de ferramentas, máquinas e materiais de trabalho. O capital, ao contrário da terra, não está em oferta ou disposição fixa. Pode ser feito e refeito, movido, agregado e disperso. Um grau infinitamente maior de potencial pode ser liberado do mundo como um recurso produtivo, uma vez que o plano abstrato da propriedade inclui tanto a terra quanto o capital – tal é o “avanço” do capital.

A classe capitalista reconhece o valor do hack no abstrato, enquanto os pastores demoraram a apreciar a produtividade que pode fluir da aplicação da abstração ao processo de produção. Sob a influência do capital, o Estado sanciona formas de propriedade intelectual, como patentes e direitos autorais, que garantem uma existência independente para os hackers como classe, e um fluxo de inovações na cultura e na ciência a partir do qual o desenvolvimento se origina. A informação, uma vez que se torna uma forma de propriedade, se desenvolve além de um mero suporte para o capital – ela se torna a base de uma forma de acumulação por direito próprio.

Os hackers devem calcular seus interesses não como proprietários, mas como produtores, pois é isso que os distingue da classe vetorialista. Os hackers não apenas possuem e lucram com a posse de informações. Produzem novas informações e, como produtores, precisam acessá-las livres da dominação absoluta da forma mercadoria. O hacking como uma atividade experimental pura e livre deve estar livre de qualquer restrição que não seja auto-imposta. Somente a partir de sua liberdade produzirá os meios de produzir um excedente de liberdade e a liberdade como excedente.

A propriedade privada surgiu em oposição não apenas à propriedade feudal, mas também às formas tradicionais da economia da dádiva, que eram um grilhão ao aumento da produtividade da economia mercantil. A troca de presentes qualitativa foi substituída pela troca quantificada e monetizada. O dinheiro é o meio pelo qual terra, capital, informação e trabalho se confrontam como entidades abstratas, reduzidas a um plano abstrato de medida. A dádiva torna-se uma forma marginal de propriedade, invadida por toda parte pela mercadoria e voltada para o mero consumo. A dádiva é marginal, mas, no entanto, desempenha um papel vital na consolidação das relações recíprocas e comunitárias entre pessoas que, de outra forma, só podem se confrontar como compradoras e vendedoras de mercadorias. À medida que a produção vetorial se desenvolve, surgem os meios para a renovação da economia da dádiva. Em todos os lugares que o vetor chega, ele traz para a órbita da mercadoria. Mas aonde quer que o vetor chegue, ele também traz consigo a possibilidade da relação de dádiva.

A classe hacker tem uma grande afinidade com a economia da dádiva. O hacker luta para produzir uma subjetividade qualitativa e singular, em parte pelo próprio ato do hack. A dádiva, como troca qualitativa entre partes singulares, permite que cada parte seja reconhecida como produtora singular, como sujeito da produção, e não como objeto mercantilizado e quantificado. A dádiva expressa de forma social e coletiva a subjetividade da produção da produção, enquanto a propriedade mercantilizada representa o produtor como um objeto, uma mercadoria quantificável como qualquer outra, de valor apenas relativo. O dom da informação não precisa dar origem a conflito sobre a informação como propriedade, pois a informação não precisa sofrer o artifício da escassez uma vez liberada da mercantilização.

A classe vetorialista contribuiu, sem querer, para o desenvolvimento do espaço vetorial dentro do qual a dádiva como propriedade poderia retornar, mas rapidamente reconheceu seu erro. À medida que a economia vetorial se desenvolve, cada vez menos toma a forma de um espaço social de troca aberta e gratuita de presentes, e cada vez mais toma a forma de produção mercantilizada para venda privada. A classe vetorialista pode relutantemente acomodar alguma margem de informação socializada, como o preço que paga em uma democracia pela promoção de seus principais interesses. Mas a classe vetorialista, com razão, vê na dádiva um desafio não apenas aos seus lucros, mas à sua própria existência. A economia da dádiva é a prova virtual da natureza parasitária e supérflua dos vetores como classe.

Vetor

Em epidemiologia, um vetor é o meio particular pelo qual um determinado patógeno viaja de uma população para outra. A água é um vetor para a cólera, fluidos corporais para o HIV. Por extensão, um vetor pode ser qualquer meio pelo qual a informação se move. Telégrafo, telefone, televisão, telecomunicações: esses termos designam não apenas vetores particulares, mas uma capacidade abstrata geral que eles trazem ao mundo e expandem. Todas são formas de telestesia, ou percepção à distância. Um determinado vetor de mídia tem certas propriedades fixas de velocidade, largura de banda, escopo e escala, mas pode ser implantado em qualquer lugar, pelo menos em princípio. O desenvolvimento desigual do vetor é político e econômico, não técnico.

Com a mercantilização da informação vem sua vetorização. Extrair um excedente de informação requer tecnologias capazes de transportar informação através do espaço, mas também através do tempo. O arquivo é um vetor através do tempo assim como a comunicação é um vetor que atravessa o espaço. A classe vetorial se destaca uma vez que possui tecnologias poderosas para vetorizar informações.

A classe vetorial pode mercantilizar os próprios estoques de informação, fluxos ou vetores. Um estoque de informações é um arquivo, um corpo de informações mantido ao longo do tempo que tem valor duradouro. Um fluxo de informação é a capacidade de extrair informações de valor temporário de eventos e distribuí-las ampla e rapidamente. Um vetor é o meio de alcançar a distribuição temporal de um estoque ou a distribuição espacial de um fluxo de informação. O poder vetorial é geralmente buscado através da propriedade de todos os três aspectos. A classe vetorial ascende à ilusão de um plano instantâneo e global de cálculo e controle. Mas não é a classe vetorialista que passa a deter o poder subjetivo sobre o mundo objetivo. O próprio vetor usurpa o papel subjetivo, tornando-se o único repositório da vontade em direção a um mundo que só pode ser apreendido em sua forma mercantilizada. O reino do vetor é aquele em que toda e qualquer coisa pode ser apreendida como coisa. O vetor é um poder sobre todo o mundo, mas um poder que não é distribuído uniformemente. Nada na tecnologia do vetor determina seu uso possível. Tudo o que é determinado pela tecnologia é a forma como a informação é objetivada.

A classe vetorial luta a cada passo para manter seu poder subjetivo sobre o vetor, mas como continua a lucrar com a proliferação do vetor, alguma capacidade sobre ele sempre escapa ao controle. Para comercializar e lucrar com a informação que distribui sobre o vetor, deve, em algum grau, abordar a grande maioria das classes produtoras como sujeitos, e não como objetos de mercantilização. A classe hacker busca libertar o vetor do reino da mercadoria, mas não libertá-lo indiscriminadamente. Em vez disso, submetê-lo ao desenvolvimento coletivo e democrático. A classe hacker pode liberar a virtualidade do vetor apenas em princípio. Cabe a uma aliança de todas as classes produtivas transformar esse potencial em realidade, organizar-se subjetivamente e utilizar os vetores disponíveis para um devir coletivo e subjetivo.

Educação

A educação é escravidão, aprisiona a mente e a torna um recurso para o poder de classe. Quando a classe dominante prega a necessidade de uma educação, invariavelmente significa uma educação em necessidade. Educação não é o mesmo que conhecimento. Nem é o meio necessário para adquirir conhecimento. A educação é a organização do conhecimento dentro dos limites da escassez. A educação ‘disciplina’ o conhecimento, segregando-o em ‘campos’ homogêneos, presididos por guardiões devidamente ‘qualificados’ encarregados de policiar a representação do campo. Pode-se adquirir uma educação, como se fosse uma coisa, mas torna-se conhecedor, através de um processo de transformação. O conhecimento, como tal, só é captado parcialmente pela educação, sua prática sempre a ilude e a ultrapassa.

A classe pastoril tem resistido à educação, exceto como doutrinação na obediência. Quando o capital exigia “mãos” para fazer seu trabalho sujo, a maior parte da educação era dedicada a treinar mãos úteis para cuidar das máquinas e corpos dóceis que aceitassem como natural a ordem social em que se encontravam. Quando o capital exigia cérebros, tanto para executar suas operações cada vez mais complexas quanto para se dedicar ao trabalho de consumir seus produtos, era necessário mais tempo gasto na prisão da educação para a admissão nas fileiras da classe trabalhadora remunerada.

A chamada classe média obtém acesso privilegiado ao consumo e segurança por meio da educação, na qual é obrigada a investir parte substancial de sua renda. Mas a maioria continua sendo trabalhadora, embora trabalhe com informação em vez de algodão ou metal. Eles trabalham em fábricas, mas são treinados para pensar nelas como escritórios. Eles recebem salários para casa, mas são treinados para pensar nisso como um salário. Eles usam um uniforme, mas são treinados para pensar nele como um terno. A única diferença é que a educação os ensinou a dar nomes diferentes aos instrumentos de exploração e a desprezar aqueles de sua própria classe que os nomeiam de maneira diferente.

Onde a classe capitalista vê a educação como um meio para um fim, a classe vetorialista a vê como um fim em si mesma. Ele vê oportunidades para tornar a educação uma indústria lucrativa por si só, com base na garantia da propriedade intelectual como uma forma de propriedade privada. Para os vetorialistas, educação, como cultura, é apenas ‘conteúdo’ para mercantilização.

A classe hacker tem uma relação ambivalente com a educação. A classe hacker deseja conhecimento, não educação. O hacker nasce pela pura liberdade do conhecimento em si. O hack expressa o conhecimento em sua virtualidade, ao produzir novas abstrações que não necessariamente se enquadram no regime disciplinar de gestão e mercantilização da educação. O conhecimento hacker implica, em sua prática, uma política de informação livre, aprendizado livre, entrega do resultado a uma rede de pares. O conhecimento hacker implica também uma ética do conhecimento sujeita às reivindicações do interesse público e livre de subordinação à produção de mercadorias. Isso coloca o hacker em uma relação antagônica à luta da classe capitalista para fazer da educação uma indução à escravidão assalariada.

Apenas um conflito intelectual tem alguma relação real com a questão de classe para os hackers: de quem é a propriedade do conhecimento? É papel do conhecimento autorizar por meio da educação sujeitos que são reconhecidos apenas por sua função em uma economia, manipulando suas representações autorizadas como objetos? Ou é função do conhecimento produzir os fenômenos sempre diferentes do hack, nos quais os sujeitos se tornam outros que não eles mesmos, e descobrem que o mundo objetivo contém potenciais diferentes do que aparece?

Hacking

O virtual é o verdadeiro domínio do hacker. É a partir do virtual que o hacker produz expressões sempre novas do atual. Para o hacker, o que é representado como real é sempre parcial, limitado, talvez até falso. Para o hacker há sempre um excedente de possibilidade expresso no que é atual, o excedente do virtual. Este é o domínio inesgotável do que é real sem ser atual, do que não é, mas do que pode ser. Hackear é liberar o virtual no real, expressar a diferença do real.

Através da aplicação da abstração, a classe hacker produz a possibilidade de produção, a possibilidade de fazer algo do e com o mundo – e de viver do excedente produzido pela aplicação da abstração à natureza – a qualquer natureza. Através da produção de novas formas de abstração, a classe hacker produz a possibilidade do futuro – não apenas ‘o’ futuro, mas um conjunto infinito possível de futuros, o próprio futuro como virtualidade.

Sob a sanção da lei, o hack se torna uma propriedade finita, e a classe hacker emerge, como todas as classes emergem, de uma relação com uma forma de propriedade. Como todas as formas de propriedade, a propriedade intelectual impõe uma relação de escassez. Atribui um direito de propriedade a um proprietário às custas dos não proprietários, a uma classe de possuidores às custas dos despossuídos.

Por sua própria natureza, o ato de hackear supera os limites que a propriedade lhe impõe. Novos hacks substituem velhos hacks e os desvalorizam como propriedade. O hack como nova informação é produzido a partir de informações já existentes. Isso dá à classe hacker um interesse em sua disponibilidade gratuita mais do que em um direito exclusivo. A natureza imaterial da informação significa que a posse de uma informação por um não precisa privar outro dela.

Na medida em que o hack se encarna na forma de propriedade, ele confere à classe hacker interesses bem diferentes de outras classes, sejam elas exploradoras ou exploradas. O interesse da classe hacker reside antes de tudo na livre circulação da informação, sendo esta a condição necessária para a renovada afirmação do hack. Mas a classe hacker como classe também tem interesse na representação do hacker como propriedade, como algo do qual pode derivar uma fonte de renda que dá ao hacker alguma independência das classes dominantes.

A própria natureza do hack dá ao hacker uma crise de identidade. O hacker busca uma representação do que é ser hacker nas identidades de outras classes. Alguns se veem como vetorialistas, negociando com a escassez de suas propriedades. Alguns se veem como trabalhadores, mas como privilegiados em uma hierarquia de assalariados. A classe hacker se produz como ela mesma, mas não para si mesma. Ele (ainda) não possui uma consciência de sua consciência. Não tem consciência de sua própria virtualidade. Ela precisa distinguir entre seu interesse competitivo no hack e seu interesse coletivo em descobrir uma relação entre hackers que expresse um futuro aberto e contínuo.

Informação

A informação quer ser livre, mas está em toda parte acorrentada. A informação é o potencial do potencial. Quando livre, libera as capacidades latentes de todas as coisas e pessoas, objetos e sujeitos. A informação é, de fato, o próprio potencial para que haja objetos e sujeitos. É o meio em que objetos e sujeitos realmente passam a existir, e é o meio em que reside sua virtualidade. Quando a informação não é livre, então a classe que a possui ou a controla volta sua capacidade para seu próprio interesse e para longe de sua própria virtualidade inerente.

Informação não tem nada a ver com comunicação, ou com mídia. “Não nos falta comunicação. Pelo contrário, temos muito dela. Falta criação. Falta resistência ao presente.” A informação é justamente essa resistência, esse atrito. A pedido da classe vetorialista, o Estado reconhece como propriedade qualquer comunicação, qualquer produto de mídia com algum grau mínimo de diferença reconhecível na troca de mercadorias. Onde a comunicação requer apenas a repetição dessa diferença mercantilizada, a informação é a produção da diferença da diferença.

A prisão do livre fluxo de informação significa a escravização do mundo aos interesses daqueles que lucram com a escassez de informação, a classe vetorial. A escravização da informação significa a escravização de seus produtores aos interesses de seus proprietários. É a classe hacker que explora a virtualidade da informação, mas é a classe vetorialista que possui e controla os meios de produção da informação em escala industrial. Privatizar a cultura, a educação e a comunicação como conteúdos mercantilizados distorce e deforma seu livre desenvolvimento e impede o próprio conceito de sua liberdade de seu próprio livre desenvolvimento. Enquanto a informação permanece subordinada à propriedade, não é possível para seus produtores calcular livremente seus interesses, ou descobrir o que a verdadeira liberdade de informação pode potencialmente produzir no mundo.

A informação livre deve ser livre em todos os seus aspectos – como estoque, como fluxo e como vetor. O estoque de informações é a matéria-prima da qual a história é abstraída. O fluxo da informação é a matéria-prima da qual se abstrai o presente, um presente que forma o horizonte que a linha abstrata de um saber histórico atravessa, indicando um futuro à sua vista. Nem estoques nem fluxos de informação existem sem vetores ao longo dos quais eles podem ser atualizados. Os eixos espaciais e temporais da informação livre devem fazer mais para oferecer uma representação das coisas, como uma coisa à parte. Devem tornar-se o meio de coordenação da afirmação de um movimento, ao mesmo tempo objetivo e subjetivo, capaz de conectar a representação objetiva das coisas à apresentação de uma ação subjetiva.

Não é apenas a informação que deve ser gratuita, mas o conhecimento de como usá-la. A informação em si é uma mera coisa. Requer uma capacidade ativa e subjetiva para se tornar produtivo. A informação é livre não para representar o mundo perfeitamente, mas para expressar sua diferença do que é e para expressar a força cooperativa que transforma o que é no que pode ser. O teste de uma sociedade livre não é a liberdade de consumir informação, nem de produzi-la, nem mesmo de implementar seu potencial no mundo privado de sua escolha. O teste de uma sociedade livre é a liberdade para a transformação coletiva do mundo através de abstrações livremente escolhidas e livremente atualizadas.

Representação

Toda representação é falsa. Uma semelhança difere necessariamente daquilo que representa. Se não, seria o que representa e, portanto, não uma representação. A única representação verdadeiramente falsa é a crença na possibilidade de uma representação verdadeira. A crítica não é uma solução, mas o próprio problema. A crítica é uma ação policial em representação, a serviço apenas da manutenção do valor da propriedade através do estabelecimento de seu valor.

A política da representação é sempre a política do Estado. O Estado nada mais é do que o policiamento da adequação da representação ao corpo do que ela representa. Mesmo em sua forma mais radical, a política de representação sempre pressupõe um estado abstrato ou ideal que atuaria como garantidor de suas representações escolhidas. Ela anseia por um Estado que reconheça essa etnia oprimida, ou sexualidade, mas que, no entanto, ainda é um desejo de um Estado, e um Estado que, no processo, não seja contestado como uma afirmação de interesse de classe, mas seja aceito como o juiz de representação.

E sempre, o que está excluído mesmo desse estado imaginário iluminado, seriam aqueles que recusam a representação, a saber, a classe hacker como classe. Hackear é recusar a representação, fazer as coisas se expressarem de outra forma. Hackear é sempre produzir uma diferença, mesmo que apenas uma diferença mínima, na produção de informação. Hackear é perturbar o objeto ou o sujeito, transformando de alguma forma o próprio processo de produção pelo qual objetos e sujeitos passam a existir e se reconhecem por suas representações.

A política da informação, do conhecimento, avança não por uma negação crítica das falsas representações, mas por uma política positiva da virtualidade do enunciado. O excedente inesgotável de declarações é aquele aspecto da informação do qual depende o interesse de classe dos hackers. Hacking traz à existência a multiplicidade inesgotável de todos os códigos, sejam eles naturais ou sociais, programados ou poéticos. Mas como é o ato de hackear que compõe, ao mesmo tempo, o hacker e o hack, o hacking não reconhece nenhuma escassez artificial, nenhuma licença oficial, nenhuma força policial credenciadora além daquela composta pela economia da dádiva entre os próprios hackers.

Uma política que abrace sua existência como afirmação, como diferença afirmativa, não como negação, pode escapar à política do Estado. Ignorar ou plagiar a representação, recusar-se a dar-lhe o que lhe é devido, é começar uma política de apatridia. Uma política que recusa a autoridade do Estado para autorizar o que é uma afirmação valorizada e o que não é. Uma política que é sempre temporária, sempre se tornando outra coisa que não ela mesma. Mesmo hacks inúteis podem vir, perversamente, a ser valorizados pela pureza de sua inutilidade. Não há nada que não possa ser valorizado como representação. O hack sempre tem que seguir em frente.

Em todos os lugares a insatisfação com as representações está se espalhando. Às vezes é uma questão de quebrar algumas vitrines, às vezes de quebrar algumas cabeças. A chamada ‘violência’ contra o Estado, que raramente é mais do que atirar pedras em sua polícia, é meramente o desejo pelo Estado expresso em sua forma masoquista. Onde alguns clamam por um estado que reconheça sua representação, outros clamam por um estado que os espanque. Tampouco é uma política que escapa ao desejo cultivado no sujeito pelo aparato educacional.

Às vezes, a democracia direta é posta como alternativa. Mas isso apenas muda o momento da representação – coloca a política nas mãos dos pretendentes a uma representação ativista, no lugar de uma eleitoral. Às vezes, o que se exige da política de representação é que ela reconheça um novo sujeito. Minorias de raça, gênero, preferência exigem o direito à representação. Mas logo eles descobrem o custo. Eles devem agora policiar o significado dessa representação e policiar a adesão de seus membros a ela. Mesmo em sua melhor forma, em sua forma mais abstrata, em seu melhor comportamento, o estado daltônico, de gênero neutro e multicultural apenas entrega o valor da representação à forma de mercadoria. Embora isso seja um progresso, particularmente para aqueles anteriormente oprimidos pelo fracasso do Estado em reconhecer sua identidade como legítima, ele se detém no reconhecimento de expressões de subjetividade que buscam se tornar algo diferente de uma representação que o Estado pode reconhecer e o mercado pode valorizar .

Mas há algo mais pairando no horizonte do representável. Há uma política do irrepresentável, uma política da apresentação da demanda inegociável. Esta é a política como a recusa da própria representação, não a política de recusar esta ou aquela representação. Uma política que, embora abstrata, não é utópica. Em sua demanda infinita e ilimitada, pode até ser a melhor maneira de extrair concessões justamente pela sua recusa em colocar um nome – ou um preço – no que a revolta deseja.

Revolta

As revoltas de 1989 são os eventos marcantes do nosso tempo. O que as revoltas de 1989 alcançaram foi a derrubada de regimes tão impenetráveis ao reconhecimento do valor do hack que privaram não apenas seus hackers, mas também seus trabalhadores e agricultores de qualquer aumento no excedente. Com seu clientelismo e cleptocracia, sua burocracia e ideologia, sua polícia e espiões, eles privaram até mesmo seus pastores e capitalistas de transformação e crescimento inovadores.

As revoltas de 1989 derrubaram o tédio e a necessidade. Pelo menos por um tempo. Eles colocaram de volta na agenda histórica mundial a exigência ilimitada de liberdade de expressão. Pelo menos por um tempo. Eles revelaram o destino latente da história mundial para expressar a pura virtualidade do devir. Pelo menos por um tempo, antes que novos estados se reunissem e reivindicassem legitimidade como representações do que a revolta desejava. As revoltas de 1989 abriram o portal para o virtual, mas os estados que se reagruparam em torno dessa abertura logo o fecharam. O que as revoltas realmente conseguiram foi tornar o mundo seguro para o poder vetorial.

Os chamados protestos antiglobalização dos anos 90 são uma ondulação causada pelo rastro desses eventos sinalizadores, mas uma ondulação que não conhecia a corrente a que realmente pertencia. Esse movimento de revolta no mundo superdesenvolvido identifica o poder vetorial em ascensão como um inimigo de classe, mas com demasiada frequência se deixou capturar pelos interesses parciais e temporários das classes capitalistas e pastoris locais. Foi uma revolta em sua infância que ainda não descobriu a conexão entre seu motor de desejo ilimitado e livre declaração, e a arte de fazer exigências táticas.

A luta de classes dentro das nações e a luta imperial entre as nações tomaram forma como duas formas de política. Um tipo de política é regressiva. Busca retornar a um passado imaginado. Ele procura usar as fronteiras nacionais como um novo muro, uma tela de néon atrás da qual alianças improváveis podem proteger seus interesses existentes em nome de um passado glorioso. A outra forma é a política progressista do movimento. A política do movimento busca acelerar em direção a um futuro desconhecido. Busca usar os fluxos internacionais de informação, comércio ou ativismo como meios ecléticos de luta por novas fontes de riqueza ou liberdade que superem as limitações impostas pelas coalizões nacionais.

Nenhuma dessas políticas corresponde à velha noção de esquerda ou direita, que as revoluções de 1989 superaram definitivamente. A política regressiva reúne impulsos luditas da esquerda com impulsos racistas e reacionários da direita em uma aliança profana contra novas fontes de poder. A política progressista raramente toma a forma de uma aliança, mas constitui dois processos paralelos travados em um diálogo de suspeita mútua, em que as forças liberalizantes da direita e as forças de justiça social e direitos humanos da esquerda buscam soluções não nacionais e transnacionais para desbloquear o sistema de poder que ainda se acumula a nível nacional.

Há uma terceira política, que está fora das alianças e compromissos do mundo pós-89. Onde tanto a política progressista quanto a regressiva são políticas representativas, que lidam com alianças e interesses partidários agregados, essa terceira política é uma política sem estado, que busca escapar da política como tal. Uma política do hack, inventando relações fora da representação. A política expressiva é uma luta contra a própria propriedade da mercadoria.

A política expressiva não é a luta para coletivizar a propriedade, pois esta ainda é uma forma de propriedade. A política expressiva é a luta para libertar o que pode ser livre de ambas as versões da forma de mercadoria – sua forma totalizante de mercado e sua forma burocrática de estado. O que pode estar totalmente livre da forma de mercadoria não é terra, nem capital, mas informação. Todas as outras formas de propriedade são exclusivas. A propriedade de um exclui, por definição, a propriedade de outro. Mas a informação como propriedade pode ser compartilhada sem diminuir nada além de sua escassez. Informação é aquilo que pode escapar da forma mercadoria.

A política só pode se tornar expressiva quando é uma política de liberação da virtualidade da informação. Ao liberar a informação de sua objetivação como mercadoria, ela libera também a força subjetiva do enunciado. Sujeito e objeto se encontram fora da mera falta um do outro, pelo simples desejo um do outro. A política expressiva não procura derrubar a sociedade existente, ou reformar suas estruturas maiores, ou preservar sua estrutura para manter uma coalizão de interesses existente. Busca permear os estados existentes com um novo estado de existência, espalhando as sementes de uma prática alternativa da vida cotidiana.


Fonte: https://anarchotranshuman.org/post/49990204445/a-hackers-manifesto-by-mckenzie


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