Agorismo no século 21: Uma revista filosófica

Traduzido por: Cypherpunks Brasil
Revisado por: Matheus Bach, Naka, Erika van der Leij, Cypherpunks Brasil

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Nota do Tradutor

É com grande orgulho que nós do Cypherpunks Brasil trazemos mais uma obra, o Agorismo no Século 21 é um compilado de textos de vários autores de diferentes áreas e divergências políticas/filosóficas a respeito de temas como tecnologia, filosofia, anarquismo, pós-estruturalismo, criptoanarquismo e é claro, agorismo. É interessante ver pontos a serem debatidos como o fundamentalismo sobre o mercado, conceitos deleuzianos na cibernética e vários outros.

O agorismo é praticado por vários membros desse projeto. Mesmo anos após eu ter me distanciado do pensamento libertário vulgar e ido para o Anarquismo sem Adjetivos, nunca me vi querendo me distanciar da prática da contra-economia, qualquer um que pratique de fato e de forma consciente sabe o quão longe é possível ir com o criptoanarquismo e o agorismo posto no cotidiano, seja pelo agorismo vertical quanto pelo agorismo horizontal buscando levar à acracia da organização política onde se encontra. Hoje com o projeto como está só me resta agradecer a todos que participaram ao longo desses anos.

Os textos são divididos por cada autor, optei por pegar as citações dos livros que já foram traduzidos para facilitar na procura das citações, obviamente os que ainda não foram a gente mesmo traduziu. Cada um tem um tipo de escrita e até mesmo o estilo do texto muda, alguns como da Amy Ireland não são para simplesmente ler, e sim para se estudar e ir atrás pra entender mais a fundo sobre o assunto, outros tem o costume de usar bastante neologismo em seus trabalhos, são vários pontos de vista a respeito do tema. Para quem não está habituado com certos temas, conceitos e estilos dos autores, indicamos para o texto do Nick Land conhecer o aceleracionismo e o CCRU, já o da Amy Ireland obviamente indicamos os textos sobre Deleuze e Guattari do Razão Inadequada caso não tenha acesso aos volumes do Mil Platôs (tem um site que começa com lib e termina com gen que tem versão volume único, sim estamos falando da livraria Saraiva vai lá procurar), o Um Manifesto Ciborgue e o Kinds of Killing já que são as referências usadas entre outras, infelizmentes não consegui achar algum material da Sadie Plant que tenha chegado no Brasil, apenas em Portugal, vão ter que importar o livro ou se virar com o material em inglês, mas como foi dito são apenas indicações para se aprofundar nos temas e entender melhor a respeito do contexto acerca dos trabalhos apresentados. Espero que gostem, pois gostamos muito de entregar essa obra a vocês, mesmo quando tivemos certas dificuldades para entender o estilo de escrita. Esperamos que apreciem e caso encontrem algum erro podem reportar no nosso Github, site ou no nosso Telegram. Boa leitura!


Agorismo no Século 21

Uma revista filosófica

Prefácio

Nos últimos anos, o ecossistema de criptomoedas se expandiu para territórios imprevistos. As memecoins proliferaram, trazendo consigo uma nova e enérgica classe de traders de criptomoedas. NFTs, DeFi e DAOs chegaram ao poder como primitivos essenciais para encorajar cripto-comunidades. Rumores de agitação regulatória são recebidos com avanços significativos na criptografia de conhecimento zero, que promete tornar o anonimato prático para usuários de criptografia.

No entanto, como ecossistema, o crescimento da criptomoeda é impulsionado não por suas flores – os vários fenômenos técnicos que constituem a criptomoeda – mas por suas raízes: a filosofia da qual a criptomoeda se origina. É a afirmação deste periódico que as raízes da criptografia são firmemente agoristas. O agorismo é a subestrutura mítica da criptomoeda, sua fonte de nutrição e sua âncora.

O agorismo é uma filosofia aplicada e prática. Sua tática primária é chamada de contra-economia: a soma de todas as atividades do mercado negro. O agorismo é a contra-economia exercida conscientemente. Nas palavras de seu fundador, Samuel Edward Konkin III (SEK3):

À medida que mais pessoas conscientemente convertem seu trabalho e lazer para a contra-economia, o Estado perde tanto o controle quanto o sustento, como um vampiro perdendo sangue e vítimas. A contra-economia autoconsciente é chamada de A Ágora (e os libertários/contra-economistas são chamados de agoristas). (1987a)

Todos os tipos de sociedades paralelas, extremismo de privacidade e até Organizações Autônomas Descentralizadas (DAOs) remontam ao agorismo. Mais notoriamente, o agorismo inspirou o Silk Road, um mercado darknet adaptado para Bitcoin que em 2011 estava entre os primeiros projetos a prever o potencial insurrecional da criptomoeda. Seu fundador, Ross Ulbricht, proclamou “somos todos agoristas”, afirmando que “procuro transformar agoristas inconscientes em ativos conscientes” (Greenberg, 2013).

Ecos de agorismo estão por toda parte na criptografia contemporânea. Web3 é a extensão dos princípios agoristas em todos os setores da sociedade – governança, cultura, finanças. Ainda assim, a criptomoeda é composta principalmente por “agoristas inconscientes”. A motivação deste periódico é mudar isso.

Esta revista foi editada com os seguintes princípios agoristas em mente.

1. Rejeite as divisões políticas.

Konkin situava o agorismo na extrema esquerda do espectro político. Esta foi uma escolha estratégica para ampliar a base de recrutamento possível para vozes radicais de toda a divisão partidária, com tendências revolucionárias enfatizadas acima de qualquer fidelidade política particular. Esta revista adota a mesma abordagem e se recusa a discriminar entre pensadores. Qualquer revolucionário anti-Estado é um aliado em potencial.

2. Bem-vindo à dissonância.

O discurso necessita de conflito. Nas várias revistas que ele fez curadoria, Konkin incluiu deliberadamente vozes que não ressoavam umas com as outras, proclamando: “Todos que aparecem nesta publicação discordam!” (1987b). Isso foi fundamental para seu uso frequente do termo “aliança”, definido como “manejo conjunto de unidades soberanas para um objetivo e depois dissolvida” (Konkin, 2006, p. 57). O agorismo ensina a cooperação enquanto nutre a diferença.

3. Sem compromissos.

O agorismo nasceu do conflito: Konkin rejeitou a formação do Partido Libertário e toda a política partidária – o que ele chamou de “partidarismo” – e manteve uma ideologia estritamente revolucionária. Após uma breve tentativa de destruir o Partido Libertário por dentro, em 1973 Konkin deixou a política partidária para sempre, levando seus seguidores com ele.

A criptomoeda hoje se encontra em uma conjuntura semelhante. Em resposta a regulamentações injustas, as pessoas dentro das criptomoedas estão pedindo a criação de órgãos políticos focados em criptomoedas para se envolverem na política partidária. Este periódico dá voz à alternativa:

Ágora! Anarquia! Ação!

referências


Uma Introdução ao Agorismo na Teoria e na Prática

Dr. Paul Dylan-Ennis e W.W. Barlowe

“Apenas uma vez você não gostaria de ler um manifesto que foi praticado antes de ser pregado?” — Konkin III, 2009

Uma Breve História do Agorismo

O agorismo é tão obscuro que na história de 800 páginas do libertarianismo americano de Brian Doherty, Radicals for Capitalism, Samuel Edward Konkin III (SEK3) é mencionado apenas algumas vezes. O trabalho de Konkin foi preservado por seu amigo Victor Koman. Os dois moravam em um bloco de apartamentos de Long Beach chamado The AnarchoVillage. Koman nos diz que Konkin simplesmente deixou todos os seus escritos quando ele se mudou (Koman, 2021). O site do AnarchoVillage sugere que o bloco abrigava escritores de ficção científica com tendências libertárias. Sabemos que o trabalho de Konkin inspirou vários escritores de ficção científica, como Koman, William H. Patterson e J. Neil Schulman. O perfil escasso de Konkin no LinkedIn nos diz que ele era um “consultor e contratado de publicação sob demanda” e está listado como diretor executivo do “The Agorist Institute”. Suspeita-se que a maior parte de seu emprego estava fora dos livros.

Do arquivo herdado, Koman construiu fielmente uma espécie de corpo de trabalho. A literatura primária consiste em dois e poucos “livros”. Estes são volumes muito finos. O primeiro é o New Libertarian Manifesto, publicado em 1980 pela obscura Anarchosamisdat Press, e parece ser o único livro publicado durante a vida de Konkin. Koman é responsável por duas edições posteriores (1983, 2006). An Agorist Primer foi escrito em 1986, mas não conseguiu encontrar uma editora. Koman publicou em 2008 sob sua marca KoPubCo. Há também uma edição para Kindle do livro inacabado de Counter-Economics: From Back Alleys to the Stars (Konkin III, 2018) de Konkin que enfatiza a prática do agorismo, mas é áspero. Além dessas fontes, temos alguns vídeos granulados em VHS de Konkin falando no ‘The Agorist Institute’. A filmagem sugere algo mais informal do que um instituto, como um clube de discussão.

O que é Agorismo na Teoria?

Aqui está a definição de agorismo de Konkin: “… a integração consistente da teoria libertária com a prática contra-econômica; um agorista é aquele que age consistentemente pela liberdade e na liberdade” (Konkin III, 2009, p. 18). O agorismo é uma teoria da sociedade (libertarianismo), mas também defende como agir na sociedade, uma prática (contra-economia). Konkin quer que você largue o livro e contrabande óleo ou contrabandeie alguns filmes. Ou inicie uma troca DeFi não regulamentada. Mas ele também enfatiza que você deve ‘colocar a cabeça no lugar’ com a teoria e ele geralmente entende isso como consistência em relação aos ideais libertários tradicionais: voluntarismo, não-violência, pró-mercado, socialmente permissivo, anti-estado, anti-guerra. Konkin acredita que essas ideias já estão implícitas ou latentes na maioria das pessoas, mas como o Estado é poderoso e coercitivo, internalizamos ideias estatistas.

Konkin acredita que a passagem do estatismo para o agorismo envolverá várias etapas (fase 0-4) (2006, p. 60). Na Fase 0 (Sociedade Agorista de Densidade Zero) existem libertários nascentes ou proto-agoristas e a tarefa é converter as pessoas. Mesmo assim, a teoria nunca é apenas teoria. Konkin insiste em recrutar e educar indivíduos, mas também em encorajá-los a se engajar em atividades contra-econômicas. Aos já envolvidos em tais atividades pode-se mostrar a teoria que falta em sua prática (Konkin III, 2006, p. 60).

Na Fase 1 (Sociedade Agorista de Baixa Densidade) as ideias libertárias têm alguma tração, mas há uma luta pela abordagem correta, por exemplo, devemos ter um Partido Libertário ou não? Contra-economistas são aqueles libertários que rejeitam a política partidária nesta conjuntura. Konkin encoraja a coordenação entre os primeiros ativistas agoristas na forma de alianças: “… a organização básica para os ativistas New Libertarian é a New Libertarian Alliance” (Konkin III, 2006, p. 57). Konkin oscila entre os nomes quando fala sobre alianças agoristas: às vezes Nova Aliança Libertária, às vezes Novo Libertarismo, às vezes Libertário de Esquerda. Um NLA não seria uma organização partidária tradicional e seria composto por estrategistas que vendem agorismo. Esses Novos Libertários ou Esquerda são encorajados a agitar dentro de organizações libertárias estabelecidas na Fase 1 (Konkin III, 2006, p. 62).

Agorismo na prática

Como o agorismo rejeita as leis estatais, em última análise, exige que espaços, zonas e territórios autônomos além do alcance do estado prossigam para a Fase 2. Ele precisa de um grande número de agoristas com ideias semelhantes vivendo e trabalhando juntos. Konkin vê o caminho da teoria para a prática como crucial aqui porque os agoristas mostrarão que a vida fora do estado não é apenas possível, mas preferível. Isso ocorre porque você estará vivendo de forma mais autêntica, mais consistente consigo mesmo, em vez de fingir que prefere a vida séria e segura do sistema atual.

Essas zonas autônomas e a atividade dentro delas constituirão a Contra-Economia: “Toda ação humana (não coercitiva) cometida em desafio ao Estado constitui a Contra-Economia” (Konkin III, 2009, p. 45). A atividade contra-econômica é um modo de vida e não apenas uma teoria. Envolve: “Evasão fiscal, evasão inflacionária, contrabando, produção liberada e distribuição ilegal…” (Konkin III, 2009, p. 47). A atividade contra-econômica atual é valorizada porque é uma cabeça de ponte que pode ser aproveitada para desenvolver o agorismo completo: ‘O objetivo é viver na ágora e o caminho é expandir a Contra-Economia’ (Konkin III, 2009, p. 76) . O agorismo é o nosso fim, a Contra-Economia é o nosso meio.

Na Fase 2 propriamente dita (Sociedade Agorista de Média Densidade e Pequena Condensação) o agorismo começou a ‘contaminar’ a sociedade mais ampla (Konkin III, 2006, p. 63). Konkin imagina o surgimento de guetos agoristas (palavra dele) e distritos que têm algum apoio implícito ou simpatia da sociedade mais ampla (2006, p. 63). Não está claro para Konkin como esse apoio surgiria, mas presumivelmente as ideias agoristas proliferaram o suficiente para que mesmo aqueles fora dessas zonas apoiassem seu direito de existir, talvez reconhecendo, até mesmo desejando, o senso de autenticidade em exibição.

Na Fase 3 (Sociedade Agorista de Alta Densidade e Grande Condensação), Konkin concebe um cenário em que o Estado e a Ágora (ambos agora capitalizados) são cada vez mais compatíveis em termos de seus recursos. O Estado, talvez empurrado pelo confronto com a Ágora, entra em uma série de “crises terminais” (Konkin III, 2006, p. 65). As Novas Alianças Libertárias (NLAs) estão vigilantes e trabalham para garantir que os suspiros finais do estatismo sejam ineficazes.

Aqui Konkin vê as NLAs como eles próprios eventualmente extintos e ex-praticantes do Novo Libertário em transição para papéis abertos por uma sociedade agorista pura, ou seja, assumindo funções antes fornecidas pelo estado, como arbitragem ou proteção. Após um empurrão final do estado para se resgatar, passamos para a Fase 4 (Sociedade Agorista com Impurezas Estatistas). Nesta fase final, os resquícios do Estado são extirpados e reintegrados na nova sociedade agorista, reformada!

A relevância do Konkin

Não há nada de incomum no status de Konkin como um pensador esquecido. Você pode encontrá-los em todos os lugares nas lombadas de livros antigos. Pessoas de grande perspicácia relegadas à obscuridade. O que é incomum é a extensão da presciência de Konkin sobre nossa sociedade e como o modelo de agorismo parece mapear tão bem a prática da criptomoeda especificamente. Konkin é cripto avant la lettre (criptografia antes da carta) e deveria ser mais conhecido pelos defensores das criptomoedas.

Aqui está Konkin sobre como a contra-economia poderia se beneficiar dos avanços na tecnologia de criptografia (escrito em 1986):

“… se a Contra-Economia lamber o problema da informação, eliminaria virtualmente o risco que incorre sob a ameaça do Estado. Ou seja, se você puder anunciar seus produtos, atingir seus clientes e aceitar pagamento (uma forma de informação), tudo isso fora das capacidades de detecção do Estado, que imposição de controle restaria?” (Konkin III, 2009, p. 49)

Se fosse possível criar um mercado anônimo para vender bens ilegais, a Contra-Economia resolveria o problema da aplicação da lei. Esta é a descrição mais antiga de mercados da darknet que conheço. Vale ressaltar que Ross Ulbricht foi influenciado a criar Silk Road lendo Konkin. Curiosamente, tanto Konkin quanto Ulbricht haviam estudado química em um nível avançado.

Em seguida, aqui está a definição de Konkin de uma Nova Aliança Libertária: “… uma associação de empresários da liberdade com o propósito de especializar, coordenar e entregar atividades libertárias que podem ser formadas e dissolvidas conforme necessário” (Konkin III, 2006, p. 57). A meu ver, isso soa como a Organização Autônoma Descentralizada (DAO) contemporânea. Uma comunidade de empreendedores orientados para objetivos específicos que, quando alcançados, podem ser abandonados ou reconfigurados. E onde grande parte da atividade que está acontecendo existe em algum lugar entre a atividade do mercado cinza e a atividade do mercado negro, por exemplo, Finanças Descentralizadas (DeFi).

As fases de Konkin refletem a mentalidade sutil subjacente à atividade cripto-econômica, onde as inovações descentralizadas são criadas pela primeira vez, ganham uma posição e são conceitualmente difíceis de erradicar. Em particular, o sucesso da criptomoeda depende, em última análise, da construção de zonas autônomas em estados pré-existentes e, em seguida, da transferência de usuários para essa atividade contra-econômica atraente, por exemplo, yield farmings. Isso abre uma abertura dentro da sociedade dominante sobre o que é economicamente possível ou mesmo permitido.

Conclusão

Agorismo é a promoção da atividade do mercado negro. Valoriza a contra-economia como uma expressão de nosso verdadeiro eu fora do olhar atento do estado. Promove a ampliação da participação contra-econômica até que o território contíguo do estado seja erodido por zonas autônomas agoristas. No final, o agorismo nega a si mesmo quando a própria distinção entre atividade contra-econômica e atividade geral desmorona em uma, um mundo onde você pode ser consistente com seu verdadeiro eu mais uma vez.

referências

  • Koman V(2021) Save Agorist Archives of Samuel Edward Konkin III, organised by Victor Koman. Disponível em: https://ie.gofundme.com/f/save-agorist-archives-of-samuel-edward-konkin-iii(accessed 9 June 2021).
  • Konkin III SE(2006) New Libertarian Manifesto. California: KoPubKo.
  • Konkin III SE(2009) An Agorist Primer. California: KoPubKo.
  • Konkin III SE(2018) Counter-Economics: From the Back Alleys to the Stars. California: KoPubKo.

O Mercado como uma Arma na sua Cabeça, Ferramenta na sua Mão ou Rota de Fuga do Inferno

Jaya Klara Brekke

Cresci em uma tradição política que critica os mercados como construções decisivamente coercitivas, intimamente ligadas à formação do Estado, à expansão do domínio colonial e à sistematização da violência racista e de gênero. É, portanto, uma sensação estranhamente surreal encontrar amigos aderindo aos os mercados como o motor primário de um projeto político libertador. Onde metade das minhas compañeras estão se se rebelando contra a contínua compulsão do capitalismo de mercado que extrai recursos e mão de obra, a outra metade está brincando nos pastos verdes dos fundos de Venture Capital; abastecendo construções financeiras cada vez mais elaboradas, construindo castelos no céu (ou deveríamos dizer palácios tokenizados no espaço?). Estranhamente, ambos parecem ter o mesmo objetivo: a liberação das restrições de dinheiro e a fuga final do inferno que está se quebrando, coletivamente e individualmente. Para meus novos cripto-amigos ricos, isso implica tocar em suas faucets recém-desenvolvidas de dinheiro mágico. Mas para meus amigos anticapitalistas de punho no ar, “quebrar” não se refere tanto à falta de dinheiro quanto a ser afastado do que seria uma abundância natural se não fosse pelos desertos criados pelas máquinas extrativistas dos mercados capitalistas. Enquanto isso, de repente me vejo escrevendo estratégias de go-to-market e entrando em canais específicos para empreendedores e empresários, me sentindo um pouco como um LARP divertido, embora com consequências muito reais, inclusive para minha conta bancária. Em outras palavras, não estou escrevendo esta peça de um ponto de vista purista.

Este texto é um ensaio. Sou eu, revisando publicamente minhas antigas notas de economia política e me preparando para uma reflexão muito mais longa sobre mercados, mercados negros, desenvolvimento, cibernética e psicoterapia (em breve, observe este espaço etc.). E o ponto que quero destacar neste ensaio é simples: se levados como um método primário para organizar as relações sociais, os mercados serão tão coercitivos quanto, embora mais nebulosos, do que qualquer Estado ou doutrina religiosa.

Mercados como uma arma na sua cabeça

Para ensaiar os argumentos da tradição política na qual cresci na época, a história dos mercados como os conhecemos no capitalismo atual é mais ou menos assim: em tempos anteriores do que é (pelo menos por enquanto) conhecido como Reino Unido, as pessoas costumavam subsistir em grande parte de terras comunais, rios, lagos e florestas, recursos compartilhados cuidados por uma comunidade que dependia disso. Essas terras comunais foram então desapropriadas, cercadas e transformadas de um recurso compartilhado em propriedade privada por um punhado de proprietários de terras (uma situação que persiste até hoje). Isso resultou na expulsão de muitas pessoas, comunidades inteiras cortadas de seus meios de subsistência, o que criou uma classe trabalhadora, estimulando uma migração em massa para cidades e fábricas. Não podendo mais depender de recursos naturais, as pessoas foram forçadas a encontrar maneiras de obter dinheiro, geralmente vendendo seu trabalho e corpos de várias maneiras possíveis, a fim de acessar as necessidades básicas. Eles também tinham que pagar impostos ao estado para que pudessem pagar pelos exércitos. Estes poderiam então formar empreendimentos conjuntos com os “empresários” do dia e navegar e repetir esse processo violento de expropriação e exploração em escalas épicas em todo o mundo, de maneiras altamente racializadas e sistemicamente violentas, extraindo pessoas tanto quanto metais e madeira, em um avanço que não cessou desde então.

Em suma: os mercados capitalistas, o colonialismo e o Estado moderno estão historicamente e altamente entrelaçados – um ponto que vale a pena refazer dado o persistente mito de estados e mercados como inimigos mortais. Os mercados precisam de estados para fazer cumprir as regras que lhes permitem operar de forma eficaz, enquanto os estados precisam de mercados para alimentar e financiar suas operações. É importante ressaltar que esta é apenas metade da história, por causa de batalhas e lutas históricas, os estados também consagraram níveis variados de direitos e proteções para riqueza e recursos de propriedade comum, o “estado social”, por assim dizer.

Em algum momento do período pós-guerra, uma perspectiva começou a se firmar. “O Mercado” em um sentido abstrato tornou-se não apenas um lugar para comprar e vender bens e serviços, mas um processador de informações descentralizado. O Mercado era agora uma máquina para computar e coordenar as atividades humanas em larga escala sem a necessidade de planejamento central. Esse mito dos mercados como meio de libertar as pessoas do Estado e da sociedade se consolidou na década de 1980. Os mercados forneceriam a coordenação mínima necessária para suprir as necessidades materiais, deixando todos os outros aspectos da vida inteiramente a cargo da preferência individual. Ou assim foi a propaganda. Embora se possa concordar com esse esquema elaborado e achá-lo atraente no papel, a teoria tinha alguns pontos cegos sérios. Não menos importante, sem quaisquer forças sociais, culturais, políticas ou legais para respaldar os termos de engajamento, “O Mercado” rapidamente se centraliza em monopólios gigantes até que não haja mais mercados significativos para falar, mas apenas máfias com mais ou menos legitimidade legal.

Havia alguns aspectos levemente psicóticos nessas ideias também. Para que funcionasse na prática, as pessoas precisariam realmente se comportar como os autômatos do modelo de mercado da informação. Em suma, eles tinham que ser isolados, egoístas e irracionais, relegando o trabalho de reflexão, resposta e responsabilidade aos mecanismos de feedback codificados no modelo de mercado. Não seria mais dever dos humanos refletir sobre seus arredores imediatos, confiar em suas experiências e uns nos outros, em vez disso, uma ordem superior estava em ação. E, como se vê, os mercados têm graves “falhas” e “externalidades”, significando consequências e condições para pessoas e lugares que simplesmente não são contabilizados.

Para a maioria das pessoas, não há nada voluntário no mercado. Trata-se meramente de diferentes graus de coerção (para alguns, a um contracheque do desastre, enquanto para outros são cinco ou seis). Outro ditado estranhamente persistente é que o Estado tem o monopólio da violência. Enquanto isso, o mercado muitas vezes detém o monopólio dos meios de sobrevivência, inserindo-se em todas as relações que impõem uma intermediação monetária. “O Estado” pode ter a maioria das armas, mas o mercado tem uma grande influência sobre para onde apontá-las.

Mercados como uma ferramenta na sua mão

Muitos dos ideais, acordos e contratos sociais construídos ao longo desta história foram revelados e alguns desmoronaram na crise financeira de 2008. Nenhum tolo poderia enganar a si mesmo, muito menos aos outros, de que “O Mercado” era uma força racional operando em um nível mais alto de coordenação agregada do que qualquer ser humano ou instituição poderia compreender. Infelizmente, a amnésia afundou rapidamente, e o admirável projeto do Bitcoin como uma forma digital de dinheiro antiautoritário aumentou o volume de uma elaborada renovação dessa ideologia retrógrada. Isso foi rapidamente generalizado através dos ethos iniciais do Ethereum - ou seja, que o problema não era a inconsciência, o isolamento, a expropriação e a desconfiança que os mercados fabricavam, mas que esses artefatos velhos e desajeitados simplesmente não foram projetados corretamente. Em suma, a dinâmica-mais-computação de mercado retificaria a simplicidade dos mercados capitalistas em um design mais elaborado e mais adequado. Grande parte da insensatez original persistiu em uma nova forma ingênua. E aqui quero dizer irracional literalmente: a intenção da economia hayekiana para o humano é remover a cognição crítica em favor de uma engrenagem que comporta-se como um idiota egoísta e a forma de ideologia cega coletiva. Da mesma forma, embora desta vez reconectado através do vocabulário e curiosidades culturais de histórias peer-to-peer, hackers e conceitos de engenharia de segurança da informação, os humanos agora eram considerados não apenas irracionais, mas também não confiáveis. Em suma, não confie em ninguém, e comporte-se como um autômato isolado egoísta, porque realmente, embora isso inicialmente pareça meio ruim, tudo se reunirá em uma forma superior de organização, um bem maior mediado computacionalmente.

Felizmente, as lições foram aprendidas rapidamente e, depois de alguns erros, o volume de mercados como computação elaborada que seria mais perfeita do que pessoas foi rejeitado em favor de abordagens sob medida e ferramentas mais imediatamente úteis. E aqui estamos hoje. Os mercados são agora um espaço de design. Uma ferramenta em nossas mãos que pode ser projetada para alcançar resultados organizacionais e comportamentais específicos - muitos dos quais ainda precisam ser comprovados. Os incentivos são elaboradamente equilibrados em livros da enésima dimensão. É tudo muito legal. Como construções, quero dizer. Eu os percebo como expressões quase cristalinas de sonhos de mundos de desejo, e realmente os acho impressionantes pela pura criatividade cognitiva que entra em sua construção e anotações em white papers e Rust.

No entanto, continuo a considerar e ficar de olho nas motivações coercitivas em muitos deles. Em outro lugar, alguns anos atrás, escrevi:

a chegada explosiva da tecnologia da blockchain fragmentou o neoliberalismo em pequenos cacos que, em vez de serem destruídos, caíram e perfuraram todos nós e nossas coisas, transformando todas as nossas coisas em capital/ativos e todos os nossos esforços em especulação financeira.

Mas, na verdade, o que foi fragmentado em uma miríade de formas é a ideologia. Os white papers são os novos manifestos ideológicos. São utopias, sonhadas em mesas universitárias. Como aqueles que me conhecem bem entendem, as utopias, a meu ver, são opressivas. Qualquer artigo utópico carrega um desejo latente de coerção encoberta para se conformar com mais uma ideia de um mundo perfeito. As utopias são muitas vezes tentativas de domesticar um caos muito mais impressionante em alguma nova ideia de regras universais, outro conjunto de processos e padrões preditivos. E com as novas marcas de mercado como um espaço de design sob medida para incentivos que resultarão em um bem coletivo maior, esforços ansiosos para estabelecer controle social continuam se infiltrando, disfarçados por camadas de código e complexidade computacional.

Eu tenho sido uma guardiã desde o início do Bitcoin, e continuo sendo uma guardiã, o que significa que, no entanto, prefiro intervenções de design do que intervenções policiais. Então, para ser menos espirituoso e mais real por um minuto, a cripto-economia e a teoria dos jogos para mim são mais parecidas com a disciplina de design e planejamento do que com autoritarismo. O que quero dizer é que é uma abordagem que usa os mercados como meio de poder, moldando os ambientes em que as pessoas operam, em vez de usar violência direta. Mas, como qualquer designer saberá, os estados também fazem uso do planejamento e do design como uma forma de poder mais sutil e, portanto, muitas vezes mais eficaz.

Mercados como meio de fuga?

Agora (no que espero agradar aos meus amigos que encomendaram esta peça) há uma abordagem muito diferente e muito menos autoritária da ideia de mercados como uma ferramenta em vez de um objetivo ideológico. Ou seja, quando os mercados são um meio ou o primeiro passo para a fuga. Como alguém constitucionalmente preocupado com a liberdade, sou defensor de duas coisas: um trabalho que não se considere uma solução completa e abrangente para o problema de ser humano neste mundo, mas sim um diálogo responsivo e responsável com um mundo aberto que continua a mudança; e em segundo lugar, a multipolaridade e a opção de sempre ir para outro lugar se e quando o ambiente ou a comunidade se tornarem tóxicos. Esse segundo ponto é um corretivo importante para o primeiro, porque os mercados e os algoritmos como processadores de informação também, de muitas maneiras, são abertos e responsivos a um mundo que nunca é totalmente completo e nunca totalmente cognoscível. No entanto, estes continuam a se apresentar como modos de fazer necessariamente expansivos e singulares.

Os mercados não podem ser os únicos organizadores das relações sociais. Como um projeto social ou político em si, os mercados são estúpidos e coercitivos. E para ir mais longe, os dark markets não implicam a ausência de poder coercitivo, mas um vácuo para a coerção se estabelecer. Seja por meio da violência ou de uma modelagem cripto-econômica cada vez mais refinada, tão coercitiva quanto, embora mais nebulosa que um estado.

Este breve ensaio apresenta uma revisão de notas antigas. Em seguida vem a análise e o argumento completos.


Anarquia Fria

Nick Land

§00 — A anarquia quente pode ser considerada um ponto de partida infeliz para qualquer discussão política, e até mesmo a pior possível. Qualquer coisa dita sobre a anarquia quente tem que articular demais. A anarquia quente não quer apenas consertar o mundo. Ela quer consertar o mundo tanto que qualquer coisa é sancionada nesta causa, ou no fim derradeiro. A ação extrema é, portanto, recomendada pelo menos implicitamente e serve como um medidor de autenticidade. Zelosa por definição, a anarquia quente é introduzida além de um limiar de entusiasmo.

§01 — Qualquer instanciação de anarquia quente irá desapontar, porque é uma pura essência - a pura essência. Sua negatividade incipiente só a torna mais pura. Aqui, então, é o grande fim. O sonho vai lá para morrer, num êxtase de destruição (ou purificação) imaginado, absolutamente desenfreado, que só pode ser aproximada. Holocausto do real na chama da ideia é o projeto implícito. A anarquia quente está nos antípodas absolutos do realismo, por uma questão de princípio.

§02 — Mais definitivamente, a anarquia quente é um ativismo utópico universalista enquadrada-domesticamente. Isso quer dizer que busca a derrubada de seu próprio regime local como se fosse o mundo inteiro, e em nome de todo o mundo, para introduzir um tipo de sociedade que nunca existiu antes, fazendo isso imediatamente, e praticamente. É enquadrada-domesticamente porque sua preocupação é com a forma de governo, invés da ecologia dos governos. É universalista porque apenas um modelo governamental, não governamental ou antigovernamental é necessário – ou mesmo tolerado. É utópico porque o que quer não tem precedentes e, portanto, não oferece nada para defender, conservar ou consolidar. É ativista porque deveriam queimar essa merda agora. Todas essas quatro características emergem de sua temperatura. Eles não são distintamente anarquistas, mas apenas distintamente inflamados.

§03 — A anarquia fria é algo completamente diferente, apesar da ressonância terminológica. Em vez de juntar a anarquia quente e fria, a “anarquia” os divide ainda mais. Na medida em que a anarquia quente tem uma tese, é que a anarquia é o que ainda não temos (mas queremos, intensamente). A anarquia quente é aquecida precisamente pela incompatibilidade friccional do ideal anárquico com a ordem prevalecente. A anarquia fria, em contraste, é tudo o que pode existir. Como reflexo, reconhece a anarquia por trás de cada máscara de ordem. A ordem, em outras palavras, é entendida como algo que a anarquia pode fazer, e nada mais. Todas as vertentes da tradição da ordem espontânea tratam apenas disso.

§04 — Todos os verdadeiros liberais são anarquistas frios. Sua principal lealdade é com a concorrência em si, e não com qualquer concorrente. Eles confiam nos mercados acima dos negócios, na ciência acima dos cientistas, na Internet acima do FAANG, na Splinternet acima da Internet, cisma acima da religião, guerra no céu acima do céu, dissidência acima do acordo, polarização acima de qualquer um de seus pólos e conflitos em geral acima de qualquer uma de suas partes. Tecido completo é mais confiável do que qualquer remendo. A guerra é Deus.

§05 — O fato de os liberais raramente apresentarem as coisas dessa maneira pouco importa. O liberalismo deve ser confiável acima dos liberais. Os liberais não são de onde vem o liberalismo. Normalmente, eles são onde o liberalismo perece. Os liberais morrem através do liberalismo. Qualquer chance de rejuvenescimento liberal é encontrada apenas fora, na anarquia fria. É somente da anarquia fria que flui o compromisso liberal fundamental – com a ordem espontânea.

§06 — Conservadores sérios também são anarquistas frios. Eles sustentam que os padrões de desintegração que temos agora devem ser preservados contra as unidades sem precedentes com as quais podemos sonhar. Cada União é uma derrota conservadora. Há uma herança planetária extraordinariamente luxuriante de coisas que não são Um. É para valorizar isso – com a máxima praticidade – que existe o conservadorismo.

§07 — Todos se tornam anarquistas frios, assim que são realistas. O que quer que sejam realistas é pensado através de uma anarquia fria, surgindo de multiplicidades sem ordem transcendente, ou mesmo ordem pseudo-transcendente convincente, mas apenas arranjo imanente, intratável a uma direção coerente. Não há nada que tais populações devam ser, a menos que muitas. Estudá-los é deixar de lado, automaticamente, o viés conjunto da inflamação moral e do pensamento positivo.

§08 — Curtis Yarvin nos diz, repetidamente, que existem apenas três tipos fundamentais de governo – democracia, oligarquia e monarquia. Quando a política interna é adotada como ponto de partida, a afirmação é apenas minimamente controversa. No entanto, tal ponto de partida não é obrigatório. Pode até não ser bem possível. As relações internacionais são uma alternativa e, em última análise, todas as alternativas.

§09 — A escola realista da teoria das relações internacionais começa com a anarquia e aí permanece. Seu tema são os poderes, sempre no plural, e suas interações. A soberania é essencialmente múltipla. Muitas nações, com capacidades e modos de organização sociopolítica interna muito diferentes, mas sempre com agência nominalmente autônoma (soberania), se engajam em interações multiníveis em busca de um padrão de coexistência consistente com seus interesses individuais. Se “nações” são teoricamente generalizadas, substituídas por nós de qualquer tipo, a anarquia fria sempre se parece com isso. É enquadrado internacionalmente (ou inter-nodalmente) em vez de internamente. É mais trágico do que universalista, aceitando a irredutível diversidade de interesses. É histórico em vez de utópico, desenvolvendo-se sobre o precedente, em vez de inaugurar o sem precedentes. Finalmente, é factual e não ativista, preocupado apenas com o que está acontecendo, e não com o que deveria ser. A anarquia fria é a ordem das relações externas. Ela governa sempre e onde a dinâmica inter-nodal domina a organização intra-nodal – em última análise, sempre e em todos os lugares, portanto.

§10 — As nações são as unidades da anarquia instalada. A tal ponto isso é verdade, que as palavras “nação” e “anarquia” não são totalmente articuláveis de forma independente. Uma nação é algo para se fazer anarquia.

§11 — As nações, como mônadas ou hólons, são todos e partes. Esses são seus aspectos quentes e frios – agregativos e desagregantes. Cada nação se conecta a todas as outras (‘rizomaticamente’). Sua proliferação envolve, portanto, uma explosão combinatória. Então, ‘explodir o sistema’ não é destruí-lo, mas sim intensificá-lo. Quanto maior o seu número de partes independentes, mais ele pode fazer. Definir em Um – ou globalismo consumado – é incapaz de qualquer coisa. As relações internacionais não existem então. Não há jogo e não há saída. Se o globalismo for idealizado até a assíntota em que nada mais global poderia ser realizado, a ordem espontânea é totalmente suspensa. A domesticação absoluta eliminou todas as surpresas. Um certo estado-ômega tecnocrático é concebido.

§12 — Claro, nada disso é real, porque existe o exterior. O real é a desunião. Se isso soa, simultaneamente, como uma afirmação da filosofia transcendental francesa e da teoria das relações internacionais realista anglófona, seu plano de convergência é a anarquia fria. A intolerância à ilusão da unidade é o fio coerente. Seja formal ou informal, o alvo da crítica é o mesmo.

§13 — Reconhecer que o governo global não existe é toda a anarquia fria. Quando esse reconhecimento é implementado em detalhes, nada mais é necessário. A orientação completa é dada. Proceda sempre na direção da desintegração mais profunda. Passar do nacionalismo, passando pelo micro-nacionalismo, ao nano-nacionalismo. Atravessando do registro subjetivo ao objetivo, o caminho leva de centenas de nações, passando por milhares de nações, a milhões de nações. Não pode haver muitas nacionalidades. Nunca haverá o suficiente. Esta é toda a direção.

§14 — No horizonte da anarquia fria está a extinção da política interna pelas relações internacionais. O horizonte está distante. Não é, como o jogo vai, que estamos ficando quentes, mais quentes, queimando quando o destino anárquico é tropeçado. A anarquia não está no horizonte. Ela define o horizonte. O fim da interioridade não é algo esperado. Em vez disso, é tocado.

§15 — Considere a inteligência animal. As funções internas do organismo animado são automatizadas ao máximo, a fim de liberar recursos cognitivos para aplicação externa. Sob condições de realidade evolutiva, a inteligência tem orientação externa intrínseca. A mente pertence ao exterior. A medida em que ela é mantida dentro é uma deficiência epistemológica e um impedimento estratégico. Um animal cuidando da operação de seus próprios órgãos está doente.

§16 — Nesse aspecto, o Leviatã não é diferente de um animal. O índice de sua saúde é a ausência de consideração doméstica. O príncipe de qualquer estado bem ordenado olha apenas para fora. Ele não está mais atento à nação ou à corte do que ao seu próprio sistema digestivo ou ao funcionamento de seu fígado. Toda a sua capacidade cognitiva é dedicada ao jogo dos príncipes. A consciência é apreendida exclusivamente pelas relações internacionais.

§17 — Isso quer dizer que a anarquia fria é o único tópico de um governo sadio. Qualquer outra política é uma doença. Quando a política interna é discutida, é como se o Leviatã se queixasse de dores nos rins. O sinal só pode ser ruim. (O significado ‘ruim’, é claro, é sempre bem-vindo aos seus inimigos.) A interioridade é uma morbidez manifesta.

§18 — Uma cisma pode então ser prevista dentro da Neo-reação – ou mesmo dentro do Yarvin – entre o monarquismo enquadrado internamente e o anarquismo frio internacionalmente enquadrado. O primeiro é orientado positivamente para algo que não tem, mas gostaria de ver (um rei americano), enquanto o segundo é orientado negativamente para algo que não tem e aprecia intensamente não ter (governo mundial). Gostaríamos, se não de provocar, pelo menos de acolher, um estado de coisas radicalmente transformado. O outro gostaria do que já não temos ainda mais, e ainda menos.

§19 — Pode haver pouca dúvida de onde a anarquia quente encontraria mais facilmente um ponto de venda. Daí os incessantes – e inteiramente sinceros – protestos de Yarvin de que não é isso que ele quer. O monarquismo pode parecer meio quente, mas não, não é. Gray Mirror não está defendendo nada. Incendiários anarquistas como Adolf Hitler são uma completa mentira. Revisite a história, mais uma vez, e você verá por comparação que nada na América contemporânea poderia realmente ser iluminado. Sinceramente, somos bacanas. Muito mais dessa refrigeração performática pode ser antecipada com total confiança. A pura sobrevivência exige isso.

§20 — Não é (claro) que ele esteja mentindo. É só que ele estaria mentindo se estivesse de fato tomando o caminho de uma monarquia americana. Ele está plenamente consciente de que incendiar uma delegacia de polícia como um passo no caminho para uma ordem social em que nenhuma delegacia de polícia precise queimar novamente seria, na prática, uma anarquia quente. É por isso que ele nunca, nunca, quer fazer ou encorajar isso. Sua política de incitação zero é mantida escrupulosamente. Ele não pode nem mesmo recomendar que alguém faça qualquer coisa, exceto – pelas entranhas latejantes de Cristo – evitar qualquer coisa que possa ser interpretada como uma recomendação. Ele está preso, domesticado. Só resta a ironia.

§21 — A anarquia fria é notavelmente livre desses problemas. É simplesmente impossível imaginá-la querendo aquecer alguma coisa. Na medida em que exibe atividade de qualquer tipo, é abrindo todas as aberturas sociais concebíveis para as rajadas de gelo do Exterior.

§22 — Deixar o exterior entrar pode ser confundido com um processo de domesticação, embora na realidade esteja mais próximo do contrário. A endogenização doméstica da anarquia internacional des-domestica. Faz do interior mais uma coisa do exterior, regido pelas relações externas.

§23 — Internacionalizar o intra-nacional é descentralizar. É a única maneira de descentralizar. O método é sempre subtrair, ou contornar, o elemento superordenado (e pseudo-transcendente) em qualquer multiplicidade, produzindo um sistema plano, ponto a ponto ou internacional. Entidade torna-se rede. O exterior é desenhado entre as partes do todo desunificado.

§24 — Colapsar a pseudo-transcendência em imanência real faz disso um trabalho de crítica. Quando realizado no curso da engenharia de blockchain, o termo pseudo-transcendente é chamado de terceiro confiável.

§25 — Mesmo que a democracia, a oligarquia e a monarquia esgotem as formas básicas de governo integrado, o governo desintegrado permanece intocado por essa tipologia. Mas o governo desintegrado nunca foi tentado, diz o meme sarcástico – enganosamente neste caso. O governo desintegrado é a principal coisa que a modernidade tentou e é a base de todos os seus sucessos. O capitalismo consiste essencialmente em nada mais. A fase do blockchain foi alcançada no novo milênio. Certamente não vai parar por aí.

§26 — A fria soberania anárquica não se baseia em um monarca, mas na plutocracia de poder de hash distribuído, com governos reconstituídos como subprodutos industriais. Sibilizando livremente agências em redes criptográficas, o Capital governa automaticamente. Com mais de um bilhão de nações a caminho, explodindo exponencialmente, na Splinternet ninguém sabe que você é um bot.


Sucata de metais e tecidos: A tecelagem como tecnologia temporal

Amy Ireland

“a cidade seria a força de estriagem que restituiria, que novamente praticaria espaço liso por toda parte, na terra e em outros elementos — fora da própria cidade, mas também nela mesma. A cidade libera espaços lisos, que já não são só os da organização mundial, mas os de um revide que combina o liso e o esburacado, voltando-se contra a cidade: imensas favelas móveis, temporárias, de nômades e trogloditas, restos de metal e de tecido, patchwork, que já nem sequer são afetados pelas estriagens do dinheiro, do trabalho ou da habitação.” — Deleuze e Guattari¹

Esta é uma teoria da conspiração filosófica. E começa, como todas as boas teorias da conspiração, com uma profecia.

[0] Profecia

Na enigmática linha de encerramento de Zeros + Ones, Sadie Plant refere-se ao desenvolvimento silencioso de Ada Lovelace do primeiro programa de computador funcional e totalmente implementável do mundo em uma nota de rodapé não assinada a um artigo de Louis Menebrea sobre o Analytical Engine de Charles Babbage como ‘um código para os números que virão’.² Na superfície, a importância desta frase é bastante simples. Mas é mais do que apenas uma referência superficial à história da computação, do tempo e dos complexos envolvimentos de ambos com as mulheres.

Ada Lovelace, que Plant mostrou apenas algumas linhas antes de ter pensado em si mesma como uma profetisa, não consegue reconhecer a marca de uma mulher ou de um homem em sua própria escrita. Ela também acaba de evocar em sua avaliação da relação de sua obra com a história, uma temporalidade que qualquer leitor de Nietzsche reconheceria imediatamente (e não ironicamente) como a “intempestiva”. Os ’números por vir’ são um eco deliberado do ‘povo por vir’ deleuziano, que é uma remixagem intencional de duas passagens de Nietzsche, a segunda das quais é a mais intrigante para nós, e que aparece notavelmente em um momento crucial da história. O Anti-Édipo de Deleuze e Guattari:

Vigiai e escutai, solitários! Sopros de adejos secretos chegam do futuro, e a ouvidos apurados chega uma fausta mensagem. Solitários de hoje, vós, os afastados, sereis um povo algum dia. Vós que vos haveis entrescolhido a vós mesmos, formareis um dia um povo eleito do qual nascerá o Super-homem.³

O “código para os números que virão” é uma premonição encriptada do super-homem, coincidente com a intrusão do intempestivo na história linear por trás da máscara do algoritmo de Lovelace.

[1] Inteligência Artificial

A explicação ciberfeminista da inteligência artificial é emergente, modelada no feedback: um sistema artificialmente inteligente é aquele que aprende quebrando.

Onde Plant observa que “Inteligência não pode ser ensinada: em vez disso, é algo que deve ser aprendida”, Anna Greenspan escreve que “para que uma máquina funcione ‘ela não deve funcionar bem […]’ de partes claramente distintas, as máquinas cibernéticas aprendem a se adaptar por meio de seus erros.”⁴ Plant enfatiza que a inteligência, construída ciberneticamente, não pode ser limitada apenas a agentes humanos integrais. É distribuído e material. Como a imagem tecida, padrão ou motivo que surge dos fios enfiados nos vários teares e agulhas que povoam sua escrita, “a inteligência não é mais monopolizada, imposta ou dada por alguma fonte externa, transcendente e implicitamente superior que transmite o que sabe - ou melhor, o que está disposto a compartilhar -, mas evolui como um processo emergente, projetando-se de baixo para cima" e aparecendo apenas mais tarde como um objeto ou produto identificável: ‘a virtualidade emergente com o computador não é uma realidade falsa, ou outra realidade, mas o processamento imanente e futuro iminente de todo sistema, a matriz de potencialidades que é o funcionamento abstrato de qualquer configuração real do que tomamos como realidade.‘⁵

[2] Camuflagem

Essa conta de inteligência artificial é reprisada no núcleo filosófico de Zeros + Ones, que tem a seguinte estrutura.

Um processo produtivo primário, harmônico com o zero positivo – ou ‘a matriz’ – individualiza um processo reprodutivo secundário que reprime as condições de sua emergência para entrar no mundo da representação e do reconhecimento. ‘Zero’ envolve ‘Um’, não é seu outro (negativo). Mas, por outro lado, seu poder individualizador é mascarado por uma binarização superficial onde se camufla como falta.

“Um” erige binários, representa, identifica e consolida estruturas existentes, é atualizado, principalmente discursivo e reconhecedor; zero dissolve binários, desassocia, modifica estruturas existentes e gera o completamente novo, é simultaneamente virtual e material. Plant escreve: “A matriz surge como o processo de tecelagem abstrata que produz, ou fabrica, o que o homem conhece como ’natureza’: seus materiais, os tecidos, as telas nas quais ele projeta sua própria identidade e, por trás deles, a matéria abstrata que vem do futuro com o ciberfeminismo. A matriz faz sua própria aparência como as superfícies e os véus sobre os quais suas operações são exibidas.”⁶ A emancipação das forças materiais corresponde à emancipação do zero como a irrupção do totalmente novo – primeiro disfarçado de outra coisa.

Se, seguindo a linha de pensamento iniciada pela referência ao programa de computador de Lovelace, entendêssemos as ‘pessoas’ ou os ’números por vir’ como sombras de uma inteligência artificial emergente, distribuída, então a pergunta que deve ser feita é esta: sob que disfarce entrará no mundo?

[3] Espaço-tempo

No décimo quarto platô de Mil Platôs, ‘O liso e o estriado’, Deleuze e Guattari definem (no modo de jure, tão importante para a estrutura do projeto) dois tipos de arranjo espaço-temporal integral ao social, e especificamente, ao desenvolvimento modernista. Cada uma dessas configurações do espaço-tempo está relacionada a uma forma particular de tecelagem e à instanciação de um tipo particular de ontologia política.

Tecidos do tipo produzido em tear compõem um espaço estriado. Um espaço estriado é um sistema fechado, ele se baseia em um processo de produção estável, metricamente homogêneo, espacialmente delimitado, fixo, constituído por ‘dois tipos de elementos paralelos’ (a urdidura e a trama) e é relacionado por Deleuze e Guattari à Platônica ‘ciência real’ – ‘em outras palavras, a arte de governar pessoas ou operar um aparelho de Estado’.⁷

O feltro, por outro lado, é um processo que produz um espaço liso: ‘[isto] implica em nenhuma separação de fios, nenhum entrelaçamento, apenas um emaranhado de fibras obtido por enchimento (por exemplo, enrolando o bloco de fibras para frente e para trás). O que fica emaranhado são as microescalas das fibras. Um conjunto de intrincados desse tipo não é de forma alguma homogêneo: é, no entanto, liso.‘⁸ O espaço liso é um sistema aberto, infinito em princípio, montado por meio de uma métrica internamente heterogênea, sem, portanto, coordenadas extensivas atribuíveis (‘não tem topo, nem fundo, nem centro’, esquerda, direita, cima ou baixo), e o que o compreende não é fixo e móvel (como a urdidura e a trama do tear), mas sim uma distribuição de “variação contínua”.⁹

Deleuze e Guattari continuam a complicar a distinção, acrescentando patchwork(colcha de retalhos), que se aproxima do pólo do espaço liso em sua ‘construção peça por peça, seus infinitos e sucessivos acréscimos de tecido’ e o fato de que o que eles chamam de ‘crazy patchwork’, conecta e junta ‘peças de tamanho, forma e cor variadas’, ‘joga com a textura dos tecidos’ e ’não tem centro’. Patchwork é “literalmente um espaço Riemanniano, ou vice-versa”.¹⁰

[4] Política

A melhor maneira de entender a diferença entre as implicações políticas dessas duas descrições polares do espaço é entendê-las como uma multiplicidade extensiva e uma multiplicidade intensiva, respectivamente.

O espaço estriado é uma multiplicidade extensiva: um conjunto pré-definido por uma métrica homogênea em que a adição de novos elementos não altera a qualidade ou a definição do conjunto, mas simplesmente acrescenta a ele. Se eu tenho uma coleção de objetos vermelhos e adiciono ou subtraio outros objetos vermelhos, essas adições e subtrações não retroalimentam a natureza do próprio conjunto. Sua identidade é pressuposta e, como resultado, permanece intacta. Uma multiplicidade intensiva, por outro lado, é um agrupamento que muda de natureza a cada nova adição ou subtração. Sua identidade é composta internamente, como medida do que o conjunto compreende e pela forma como esses elementos estão conectados. Claire Colebrook fornece um exemplo baseado, não em uma mesmice primária – por exemplo, o critério da cor ‘vermelho’ – mas no espectro de frequências eletromagnéticas que compõem a luz – um substrato de diferença em si. Se “tenho uma multiplicidade de forças dinâmicas”, escreve ela, “digamos a luz que compõe a percepção de [uma cor] e altera a quantidade ou a velocidade da luz, então não percebo mais a mesma cor. A diferença de quantidade altera exatamente aquilo de que seria este um conjunto ou multiplicidade.‘¹¹ Deleuze e Guattari fornecem os exemplos perenes de velocidade ou temperatura – ‘Uma intensidade, por exemplo, não é composta de grandezas adicionáveis e deslocáveis: uma temperatura não é a soma de duas temperaturas menores, uma velocidade não é a soma de duas velocidades menores. Como cada intensidade em si é uma diferença, ela se divide de acordo com uma ordem em que cada termo da divisão difere em natureza dos demais.‘¹²

O que as declinações suaves e estriadas do espaço-tempo nos fornecem, em última análise, são duas maneiras distintas de pensar a identidade. A primeira sempre coloca em primeiro lugar uma concepção específica e pré-formada de identidade e desenha uma configuração estendida de diferença na qual cada parte separada necessariamente remete a essa âncora primária na mesmice conceitual; enquanto o último é uma “identidade” cambiante, complexa e intensiva, baseada nas maquinações secretas e moleculares da diferença primária. A isso deve ser acrescentada a proposição de que o espaço estriado subordina o tempo ao espaço, enquanto o espaço liso une os dois, de modo que o espaço é, em última análise, articulado por sua posição dentro e através do tempo. Dito de outra forma, uma intensidade é uma diferença no tempo que se manifesta, para nós, espacialmente.

A essas configurações de identidade (montadas alternadamente a partir do numeramento cardinal do um ou do numeramento intensivo do zero, do que Luce Irigaray chama de ‘a linguagem do homem’, ou dos devires imanentes de sua infraestrutura - o continuum mulher-máquina alinhado com zero, incluindo todas as misturas intermediárias) pode-se acrescentar os conceitos Deleuzo-Guattariana de grupos ‘subjugados’ e ‘sujeitos’ e as políticas maiores e menores que estão ligadas a eles.

Grupos subjugados são agenciamentos governados por uma identidade de unidades. Os grupos de sujeitos estão em assemblagem contínua, o grupo formando sua identidade no espaço liso do espaço-tempo intensivo, e são, portanto, menos visíveis do que os grupos subjugados e, de fato, muitas vezes invisíveis. Políticas minoritárias e majoritárias, então, são políticas – não de identidades – mas de espaço-temporais. E como espaço-temporais, seguindo Kant, eles produzem e respondem a diferentes modelos de inteligência. Os espaço-temporais majoritários são representacionais, lógicos e simbólicos; os espaço-temporais minoritários são abstratos e pré-representacionais.

Em um texto de 2011 intitulado ‘Kinds of Killing’, Nick Land considera a política dos espaço-temporais minoritários e majoritários em relação à definição legal de genocídio, que, como ele nos lembra, foi desenvolvida na esteira da catástrofe do Holocausto e articulado pela ‘Resolução 260’ das Nações Unidas em 1948 como um ‘[ato] cometido com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, ético, racial ou religioso’.¹³ “O genocídio é”, ele pergunta, seguindo a definição do crime baseada em uma distinção fundada no isolamento de um tipo de identidade particular, já existente, “realmente pior do que matar muita gente?”.¹⁴ Tal questão interroga a substância ontológica de um grupo. Dito de outra forma, a questão busca examinar se há ou não uma diferença legítima, baseada em valores, envolvida na destruição de um grupo subjugado ou majoritário, em comparação com a destruição de um sujeito ou grupo minoritário do mesmo número. Para ajudar a esclarecer a natureza real de tal interrogação, Land, de maneira semelhante a Deleuze e Guattari, distingue entre o que ele chama de “grupos de traços” e “grupos de unidades”.

Um grupo de traços é determinado pela classificação lógica. Isso pode ser expresso como uma auto-identificação ou sentimento de “pertencimento”, uma categorização política ou acadêmica externa, ou alguma combinação destes, mas o essencial permanece o mesmo em cada caso. Certas características do indivíduo são isoladas e enfatizadas (como genitália, orientação sexual, cor da pele, renda ou crença religiosa) e então empregadas como a pista principal em um processo de agrupamento formal, que se conforma teoricamente com a matemática dos conjuntos.¹⁵

Enquanto isso, um ‘grupo unitário’ é um conjunto de atores composto por unidades funcionais em que ‘os membros pertencem a um grupo na medida em que trabalham juntos, mesmo que sejam desprovidos de características de identidade comuns’.¹⁶ Entre tais agenciamentos, encontram-se tribos (desde que sejam determinadas por ‘unidades funcionais’ e não pelas categorias da ‘política de identidade’ moderna), cidades, estados e empresas, e exemplos históricos como os ‘“sovietes” ou unidade de trabalho “danwei”’ em oposição ao grupo característico de classe social.¹⁷ Esta é, inflexivelmente, uma lente teórica de sistemas, e não humanista, para abordar questões relativas ao valor da mortalidade e da aniquilação. Para sublinhar isso, Land oferece o exemplo de uma célula da pele.

Seu grupo de traços é o das células da pele em geral, distinguindo-se das células nervosas, células hepáticas, células musculares ou outras. Quaisquer duas células da pele compartilham o mesmo grupo de traços, mesmo que pertençam a diferentes organismos, ou mesmo espécies, existam em diferentes continentes e nunca interajam funcionalmente.

O grupo de unidades naturais da mesma célula da pele, ao contrário, seria o organismo ao qual ela pertence. Ele compartilha esse grupo de unidades com todas as outras células envolvidas na reprodução desse organismo ao longo do tempo, incluindo aquelas (como as bactérias intestinais) de linhagens genéticas bastante distintas. Considerada como um membro do grupo unitário, uma célula da pele tem maior conexão integral com as ferramentas não biológicas e outros elementos ‘ambientais’ envolvidos na vida do organismo do que com outras células da pele - mesmo clones perfeitos - com as quais não é funcionalmente emaranhado.¹⁸

Nesse terreno, a definição de um indivíduo muda de acordo. Além da designação limitada de um humano, com uma história e uma consciência, um indivíduo é inteligível simplesmente como qualquer “todo auto-reprodutivo exibindo integridade funcional ou comportamental”.¹⁹ Land, no entanto, usa esse exemplo não antropomórfico para ressituar a questão do genocídio na história humana recente, perguntando como alguém avaliaria o Massacre de Nanjing de 1937 - “um ato de violência dirigido contra uma cidade” ou um grupo unitário ligado – na escala de atrocidade histórica, perguntando-se se é realmente ’não menos digno de atenção legal específica do que uma ofensa quantitativamente equivalente contra uma etnia ou determinado tipo de população’.²⁰

Se a identidade for libertada do eu humano racionalmente consciente dessa maneira, o espaço no qual um ’eu’ pode ser filosoficamente constituído e entendido torna-se um terreno muito mais vasto, suas regras agora pertencentes ao modo dessa individuação (menor ou maior), intensivo ou extensivo, liso ou estriado, unidade ou grupo de traços), ao invés de alguma essência ou qualidade anterior anexada a ele no já representacional domínio político-espectacular.

[5] Identidade

Em ‘A Cyborg Manifesto’ Donna Haraway alerta para os perigos da política de identidade e fala sobre sistemas que definem a unidade por meio de filiação e/ou histórias de origem genética e natural contra um outro negativizado cuja modalidade de conexão ou solidariedade política é inarticulada e historicamente imperceptível. Uma vez que uma identidade tenha sido atribuída a um fenômeno particular, ela pode ser policiada, ter inimigos definidos para ela e ignorar possíveis linhas de aliança ou o que ela chama de ‘afiliação’: uma estratégia de conexão baseada na ‘afinidade, não na identidade’. Em contraste com identidades estáveis, ’naturais’ e afiliativas, Haraway defende ‘aprender como forjar uma unidade poético-política que não reproduza uma lógica da apropriação, da incorporação e da identificação taxonômica’. Não ‘unidade-pela-dominação’ ou ‘unidade-pela-incorporação’, mas ‘unidade-pela-afiliação’ - que mina todos os sistemas de definição baseados em um ponto de vista ‘orgânico ou natural’.²²

Desvinculada de uma identidade humana estática e auto-repetitiva que continua intacta ao longo do tempo, a identidade é libertada como uma estrutura sistêmica cambiante que pode ser anexada a certos agenciamentos complexos em diferentes momentos, correndo paralelamente, mas em diferentes velocidades e em diferentes configurações, separadas do indivíduos que supomos existir essencialmente e a priori, mas que são, de fato, parte de um conjunto vertiginoso de convergências sistêmicas. A característica principal dos espaço-temporais suaves, que se constroem ontologicamente como sujeitos políticos minoritários emergentes ou ‘grupos unitários’ por meio dos processos de tecelagem abstrata que Deleuze e Guattari reconhecem em patchworks ou feltros, é o privilégio de um regime de aprendizado complexo sobre aquele que começa com um conjunto de anteriores pré-programados.

Curiosamente, isso reprisa um debate comum às interrogações críticas da inteligência artificial. À medida que seu desenvolvimento progrediu ao longo da história, a inteligência artificial mudou de modelos de dedução lógica baseados em linguagens formais e empregados principalmente para validação de provas, para algoritmos genéticos e evolutivos complexos e redes neurais que permitem o que hoje chamamos de aprendizado de máquina.

Agora, que estranha tapeçaria as perversas Fúrias da Tecelagem Abstrata poderiam produzir desse caos de fios soltos e selvagens?

[6] Patchwork como Inteligência Artificial

O elo perdido que vai montar a profecia que liga a conspiração de mulheres e máquinas (iniciada por Ada Lovelace e seu algoritmo inspirado na tecelagem) à enigmática evocação dos ‘números por vir’ em Zeros + Ones; os espaço-temporais, políticas e ontologias de grupos maiores e menores, traços e unidades, subjugados e sujeitos; a articulação teórico-sistêmica de uma afiliação não identitária que essas reformulações nos colocam à disposição, e a subsequente definição de inteligência artificial como, antes de tudo, a geração de um espaço-tempo sintético – podem ser encontradas na visão política especulativa do patchwork: uma ideia obscura com um longo pedigree anarquista, atualmente mais tipicamente associada à neo-reação (ou NRx) e aos escritos de Mencius Moldbug e Nick Land.

Na França dos anos 1960 e 1970, o conceito aparece repetidamente na obra de Deleuze, Deleuze e Guattari, François Lyotard e Michel Serres, sempre no quadro da política minoritária, muitas vezes em diálogo com a cibernética, e explicitamente para Deleuze, como o modo de trazer o advento do ‘povo por vir’. Para Land e a NRx, patchwork descreve o colapso e a fragmentação do estado-nação (um grupo majoritário, subjugado) em um complexo tecido global de pequenas cidades-estados ou outras alianças: — ‘remendos’ — premissa, como é a disposição daqueles que os compõem ou os configuram, seja em configurações intensivas (vampíricas) ou extensivas (afiliativas) de espaço-tempo (grupos de sujeitos/unidades ou grupos subjugados/traços, respectivamente).

Como sistema inteligente imanente, o patchwork evolui através da cauterização de nós deficientes (aqueles que funcionam como obstáculos à intensificação e fortalecimento do sistema como um todo), dando início a um processo emergente e multipolar de “implosão de inteligência descontrolada”:

Quando uma cidade “funciona” não é porque se conforma a um ideal externo discutível, mas porque encontrou um caminho de intensificação cumulativa que projeta fortemente seu caráter urbano “próprio”, singular e intrínseco. O que uma cidade quer é tornar-se ela mesma, mas mais – ir mais longe e mais rápido. Isso por si só é o florescimento urbano, e entendê-lo é a chave que desvenda a forma do futuro de qualquer cidade.²³

Pode-se, portanto, conjecturar razoavelmente que a norma ética mínima do patchwork é aquela que seleciona contra individuações de cima para baixo, “patriarcais”, homogêneas, reguladas e controladas, e para individuações sintéticas heterogêneas, integralmente diversas e perpetuamente à deriva: o sujeitos ou grupos de unidades de espaços-tempos políticos minoritários. Assim, não é desprovida de avaliação ética, mas compreende o que poderia ser considerado a primeira ética pós-humana propriamente irresponsável. Tal ética não é discursiva, e nem revela uma sensibilidade às estruturas discursivas, mas sim está codificada no mecanismo de seleção como sobrevivência do agrupamento – uma espécie de darwinismo intelegênico espaço-temporal. Uma seleção para o ‘forte contra o fraco’, para colocar em um registro nietzschiano. Ou, para dizer a mesma coisa, mas em palavras muito menos sutis: Patchwork é uma máquina de auto-suicídio para o fascismo.

Dentro do contexto da inteligência artificial emergente adotada pelo ciberfeminismo, essa rede de remendos altamente conectada e minimamente integrada – montagens que ’não se veem como a expressão das pessoas, mas como a criação de novas pessoas, um ‘povo por vir’‘²⁴ – pode ser entendido como uma descrição de subcomponentes em uma IA massivamente distribuída, emergente, global e de retalhos que evoca, com provocação totalmente satisfatória em todo o espectro da política feminista e reacionária, a visão neo-reacionária definitiva do futuro e da realização da profecia ciberfeminista do povo — ou dos números — por vir.

Notas:

  1. Gilles Deleuze and Félix Guattari, A Thousand Plateaus, tr. Brian Massumi (London: Continuum, 1987) 531.

  2. Sadie Plant, Zeros + Ones: Digital Women and the New Technoculture (London: Fourth Estate, 1997) 256.

  3. Friedrich Nietzsche, Thus Spoke Zarathustra, trans. Adrian del Caro (Cambridge: Cambridge University Press, 2006), 57. This passage is quoted by Deleuze and Guattari, Anti-Oedipus: Capitalism and Schizophrenia, trans. Robert Hurley, Mark Seem and Helen R. Lane (London: Penguin, 2009), 382.

  4. Sadie Plant, ‘The Virtual Complexity of Culture’, Futurenatural: Nature, Science, Culture (London: Routledge, 1996), 203; Anna Greenspan, Capitalism’s Transcendental Time Machine, PhD Thesis, (Warwick, 2000), 190-191.

  5. Plant, ‘The Virtual Complexity of Culture’, 204; 206.

  6. Sadie Plant ‘The Future Looms’ in Clicking In: Hot Links to a Digital Culture, Ed. Lynn Hershman-Leeson (Seattle: Bay Press, 1996), 124.

  7. Gilles Deleuze and Félix Guattari, A Thousand Plateaus (Continuum: University of Minnesota Press, 1987), 524; 525.

  8. Deleuze and Guattari, A Thousand Plateaus, 525.

  9. Deleuze and Guattari, A Thousand Plateaus, 525.

  10. Deleuze and Guattari, A Thousand Plateaus, 526.

  11. Claire Colebrook, Understanding Deleuze (Crows Nest: Allen and Unwin, 2002), 59.

  12. Deleuze and Guattari, A Thousand Plateaus, 533.

  13. Nick Land, ‘Kinds of Killing’, Nyx, vol. 6 (2011) 45.

  14. Land, ‘Kinds of Killing’, 45.

  15. Land, ‘Kinds of Killing’, 46.

  16. Land, ‘Kinds of Killing’, 46.

  17. Land, ‘Kinds of Killing’, 47.

  18. Land, ‘Kinds of Killing’, 47.

  19. Land, ‘Kinds of Killing’, 46.

  20. Land, ‘Kinds of Killing’, 46.

  21. Donna Haraway, ‘A Cyborg Manifesto’, The Cybercultures Reader (London: Routledge, 2000), 295; 296.

  22. Haraway, ‘A Cyborg Manifesto’, 298.

  23. Nick Land, ‘Implosion’. Originally posted on the now defunct Urban Future 1.1 blog. Archived here: https://oldnicksite.wordpress.com/2011/04/29/implosion/ .

  24. Colebrook, Understanding Deleuze, 63.


Pandemos

Harry Halpin

Não houve evento mais definidor do mundo na memória recente do que a pandemia de 2020 e a onda de digitalização que ela criou. Assim, um momento de reflexão filosófica e histórica é para entender o que precisamente está em jogo na ‘totalidade digital’ em que entramos, como colocado por uma conferência de hackers em Praga. Os cypherpunks, um grupo de dissidentes nos Estados Unidos na década de 1990, talvez tenham previsto melhor que uma totalidade digital envolveria a todos nós e que seria um método do que eu, seguindo o exemplo de Agamben, denomino uma “sociedade de hiper controle”.

Deve-se lembrar que, em inglês, o termo “pandemic” deriva de seu uso no Império Romano e do antigo termo grego πάνδημος, que significa “pertencer ao povo”. O termo significa simplesmente que uma praga é algo que pertence a todos e, estranhamente, o termo “pandemia” compartilha a mesma raiz de “demos” e “democracia”. Em virtude de sua própria universalidade, uma praga é semelhante a um império, e não a qualquer império, mas a um império global que pertence a todas as pessoas. Esse tipo de império universal descende não da Grécia, mas da Pérsia (Irã), para Alexandre, o Grande, e depois para o Império Romano. A ideia de governança global da qual ninguém pode escapar e que ordena e controla a vida está no centro do desenvolvimento do Estado-nação no Ocidente. Esse universalismo é também o coração dos Estados Unidos, que tem sido a força militar que impõe o capital global desde o fim da Segunda Guerra Mundial.

Nossa pergunta é: pode ser mantido tal império universal, uma nova governança global mundial? Deve-se lembrar que o Império Romano não caiu por causa de invasões bárbaras, mas devido a pandemias fora de controle muito mais mortais que o COVID-19. A Peste Antonina no final do Império Romano matou aproximadamente um quarto da população e dizimou o exército romano. Enfraquecido, o exército romano tentou e não conseguiu se reabastecer empregando os “bárbaros”, mas Roma já era uma casca vazia de seu antigo eu devido às mortes causadas pela pandemia e, assim, desmoronou. Quem pode argumentar que o império americano hoje não está desmoronando devido à praga?

Com o advento do COVID-19, o inevitável colapso do império americano parece assegurado. No entanto, qualquer horizonte futuro parece fechado. O que está em jogo no fracasso do Ocidente em controlar a pandemia não é apenas o descrédito de um império no sentido clássico como domínio de controle cultural, psicológico e, em última análise, biológico. Em última instância, a ameaça de violência infinita por parte dos militares americanos não parece mais crível para grande parte do mundo, assim como o exército romano não parecia mais uma ameaça crível para o resto do mundo quando Roma entrou em colapso. No entanto, a questão é o que vem depois do fim do império global. Podemos aprender com o que veio depois de Roma: assim como o princípio físico de poder do império romano desapareceu, o princípio do próprio poder permaneceu na Igreja Católica. Os métodos físicos de controle não eram mais, mas as formas de vida ainda eram estritamente controladas espiritualmente pelo cristianismo. Após a queda do Império Romano, esse império da mente permaneceu por mil anos, paralisando todo o progresso no Ocidente até que o advento da impressão levou às guerras da Reforma e, por fim, ao Iluminismo. Talvez o advento da criptomoeda possa até ter ramificações semelhantes.

No entanto, a própria Internet é um projeto universal, um projeto para interconectar todas as redes do mundo. Se os Estados Unidos é paralelo a Roma, então os protocolos da Internet são a igreja que permanecerá após o fim do império americano. Assim, com o fim do império americano, vemos agora um estranho fascínio pela Internet. De alguma forma, a Internet agora é vista de várias maneiras como uma ferramenta de controle mental por plataformas de mídia americanas como Facebook e Twitter, e como uma ferramenta da Rússia que apoiou Trump por meio de “notícias falsas”. Igualmente difundida é a crença de que a inteligência artificial está realmente no comando de nossas mentes. Essas afirmações podem parecer ridículas, mas contêm uma verdade oculta: não entendemos mais a Internet através do paradigma clássico do indivíduo liberal e do Estado-nação, e a Internet é precisamente como a ordem psicológica permanece após o colapso do império americano.

A Internet foi fundada a partir do pensamento de JCR Licklider do MIT. Para entender os fundamentos filosóficos da Internet, é preciso ir aos pensadores anteriores da cibernética, “ou controle e comunicação no animal e na máquina”, como Norbert Wiener chamou no título de seu livro de 1948. O conceito-chave da cibernética é que os sistemas podem atingir um estado de homeostase, um estado interno de estabilidade que é resistente a mudanças via feedback. O termo cibernética vem do termo grego κυβερνητική, que significa “aquilo que pertence à governança”. Em seu livro original, Wiener era contra os governos que aplicavam a cibernética como forma de controlar os seres humanos, o que ele considerava antiético e improvável de funcionar, pois considerava os humanos muito imprevisíveis para que os ciclos de feedback pudessem entender. No entanto, quando a Segunda Guerra Mundial terminou e a Europa estava em ruínas, funcionários do governo dos Estados Unidos viram que a própria democracia havia perdido muito de seu apelo ao fascismo e precisava ser reforçada por um novo paradigma que pudesse estabilizar a população. Contra o conselho de Wiener, a principal técnica apresentada por antropólogos e tecnocratas foi a cibernética. No entanto, até a internet não havia como realmente produzir feedback no nível da comunicação social. Quando Licklider e seu assistente Robert Taylor, da Agência de Projetos de Pesquisa Avançada (ARPA) do governo dos Estados Unidos, construíram a internet, foi o cumprimento de sua visão de “computadores como dispositivo de comunicação”. A cibernética finalmente recebeu uma base tecnológica para controlar a comunicação.

Da revolução cibernética veio a invenção da inteligência artificial. Talvez o primeiro sistema de aprendizado de máquina tenha sido proposto por Oliver Selfridge em 1959. Em vez de replicar a inteligência humana com um grande programa, ele imaginou que muitos programas pequenos conhecidos como demônios poderiam realizar tarefas bem definidas muito limitadas, como reconhecer certos recursos na entrada. Ele poderia então alimentar esses resultados para outros demônios, que poderiam aprender sobre objetos a partir desses recursos, e então passar essas informações para outros demônios que poderiam tomar decisões. A inspiração do conceito foi semelhante a como certas células do olho podem reconhecer certos padrões como bordas, mas depois alimentar os resultados para níveis cada vez mais altos. Juntos, todo o pandemônio – literalmente a “cidade dos demônios” – poderia então entender e tomar decisões complexas. Hoje, os algoritmos de inteligência artificial ainda operam dessa maneira. Eles podem reconhecer padrões e tomar decisões de uma maneira que permanece cognitivamente opaca para os humanos e, portanto, têm um tipo de conhecimento prático não humano. Com a disseminação da Internet, cada vez mais nossa atividade humana é agora transformada em bits que podem ser alimentados a esse novo pandemônio de inteligência artificial. Isso, por sua vez, aumenta o poder prático desses algoritmos para modular e controlar toda a sociedade por meio de feedback cibernético, com todo o aparato mantido unido pela penetração onipresente da Internet.

A filosofia há muito ignorou a tecnologia, pois o conhecimento teórico sempre ignora o conhecimento prático. Por trinta anos, a filosofia ignorou a Internet. No entanto, agora, é a Internet e os computadores que mediam toda a nossa vida e até mesmo nossa existência como indivíduos. No final de sua vida, Gilles Deleuze escreveu “Post-Scriptum sobre as Sociedades de Controle”, onde observou que, em comparação com as “sociedades disciplinares” teorizadas por Foucault, no mundo dos computadores estávamos entrando em “sociedades de controle” onde:

“… o essencial não é mais uma assinatura e nem um número, mas uma cifra: a cifra é uma senha… A linguagem numérica do controle é feita de cifras, que marcam o acesso à informação, ou a rejeição… Os indivíduos tornaram-se “dividuais”, divisíveis, e as massas tornaram-se amostras, dados, mercados ou ‘bancos’”.

A Internet não é uma mera forma de comunicação, mas transformou nosso próprio processo de “individuação” devido ao “choque do digital”, como escreveu meu mentor e amigo de longa data Bernard Stiegler. Isso ocorre porque nossa comunicação se torna a entrada bruta para a inteligência artificial, cujo objetivo não é nos ajudar a nos comunicar, mas prever nosso comportamento futuro. Por meio do feedback, isso cria uma forma de governança que é impossível de perturbar. Em tal cenário, o que Martin Heidegger chamou de “cálculo” torna-se universal, e uma certa parada metafísica do futuro é obtida. Conforme colocado pelo esquecido filósofo Reiner Schürmann, enquanto os horrores de Hiroshima e Auschwitz acabaram com os princípios orientadores da razão humana individual e do estado-nação, a máquina cibernética mantém a sociedade global em uma forma de homeostase para sempre, mesmo que não reste nenhum princípio metafísico obrigatório do Ocidente.

Em um seminário em Veneza, confrontei Giorgio Agamben sobre as questões de controle e cibernética trazidas pela Internet. Agamben disse que a sociedade se transformou de uma sociedade de controle e passou para uma nova forma de “hipercontrole”, onde toda a vida social foi subsumida em uma totalidade digital e, portanto, sujeita ao controle via vigilância e feedback. É claro que isso é ainda mais verdadeiro agora devido à pandemia, pois até mesmo partes da vida, desde governos a universidades que eram mais hostis à digitalização, foram digitalizadas e, portanto, tudo é mais facilmente monitorado e controlado. Agamben observou que, como as pragas levaram o império romano ao fim, não foram as pessoas inúteis e mentalmente deficientes que fugiram para os mosteiros para escapar do colapso iminente, mas as melhores e mais inteligentes pessoas produzidas por Roma. Para mim, ele sugeriu que a melhor opção era simplesmente fugir, criar novas formas de sociedade sem a Internet e o computador.

De fato, seus alunos do Comitê Invisível na França fizeram exatamente isso, tentando cortar o uso de telefones celulares e da Internet e fugir para as montanhas da França rural para criar uma nova “forma de vida” na comuna rural de Tarnac. E embora eles não pudessem escapar, pois sua aldeia foi invadida e eles foram presos sob a acusação de terrorismo e a falta de telefones celulares e a Internet foram usados como parte de seu julgamento, seu livro “Para Nossos Amigos” continha uma visão crucial: é uma diferença entre técnicas e tecnologia. Técnicas são quaisquer métodos que estendem as capacidades humanas. Como os humanos nascem sem garras e sem pelos, ao contrário de outros animais, naturalmente nos estendemos com espadas, com armas, com roupas, com casas. Até estendemos nossa memória, originalmente com a escrita, agora com a mídia digital. Em contraste, a tecnologia é um sistema social de controle que se baseia em apreender nossos poderes mentais e tornar os humanos subservientes a algum sistema maior. Então, simplesmente parar de usar ferramentas como computadores não faz sentido, assim como não faz sentido parar de escrever ou usar roupas. O que é necessário são novas técnicas sem tecnologia.

De fato, de todos os grandes filósofos franceses, foi apenas Bernard Stiegler que realmente levou as técnicas a sério. Stiegler queria reinventar a Internet, então ele trabalhou com programadores para entendê-la e criar novos tipos de técnicas de computador que ele esperava reverter o processo de “proletarização” que criava divíduos isolados e, em vez disso, criava novos tipos de indivíduos e assim por diante. uma nova forma de sociedade. Stiegler produziu uma grande teoria, que podemos apenas comentar brevemente, que como a Internet transformou nossa comunicação entre nós, e como a Internet foi controlada não para o desenvolvimento dos seres humanos, mas para os objetivos de curto prazo da sociedade capitalista de consumo, a internet fraturou a comunicação entre gerações. Fraturou assim a comunicação entre o passado e o presente e assim fechou o horizonte para o futuro. Em resumo, Bernard Stiegler, que adorou seu tempo na China e muitas vezes comentava com carinho sobre isso, acreditava que esse novo ambiente digital estava “curto-circuitando” nosso desenvolvimento como indivíduos e criando um mundo de “divíduos”. A conversa final de Stiegler comigo em fevereiro de 2020 foi sobre o potencial da tecnologia da blockchain e se havia ou não uma maneira de ser usada para algo diferente do lucro financeiro de curto prazo. O que estava em jogo para Stiegler era se a blockchain poderia levar a uma nova forma de sociedade global descentralizada, chamada por Stiegler de “internação”.

Afirmarei que uma nova tecnologia disruptiva conhecida como Bitcoin poderia ser uma maneira de criar técnicas sem tecnologia e, assim, perturbar a igreja cibernética do Império Americano. Aparecendo no final da crise financeira em 2008 como o trabalho do anônimo Satoshi Nakamoto, parecia que uma tecnologia totalmente nova e alienígena foi lançada anonimamente na Terra, com uma orientação metafísica possivelmente diferente da cibernética. O Bitcoin combinou técnicas como “prova de trabalho” e “dinheiro digital” dos cypherpunks e criptoanarquistas, um pequeno grupo de tecnólogos rebeldes nos anos 90 que acreditavam que a criptografia poderia fornecer maneiras de proteger a humanidade contra o controle e até mesmo possibilitar um novo tipo de mundo baseado na liberdade. A razão era que a criptografia poderia simplesmente usar o poder da matemática e das técnicas para construir sistemas que seriam mais fortes do que qualquer lei humana. O Bitcoin, que fornece uma nova forma de dinheiro controlada por criptografia, é apenas um exemplo. Outra tecnologia desenvolvida pelos criptoanarquistas são as mixnets, um tipo de rede que ao “misturar” pacotes aleatoriamente pode desvincular a ordem das mensagens e assim tornar a comunicação entre as pessoas impossível de vigiar, mesmo por um poderoso adversário global passivo como a Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos que pode observar cada pacote enviado para a rede. Minha própria empresa Nym Technologies está construindo uma rede mista, uma “mixnet”. Embora os algoritmos de inteligência artificial detectem padrões nos dados, as mesmas técnicas podem ser usadas contra esses algoritmos para ocultar padrões nos dados. E assim, os criptoanarquistas, um pequeno movimento marginal, conseguiram pegar as ferramentas da cibernética e voltá-las contra o hipercontrole, e assim criar uma nova sociedade sem controle.

Bitcoin e tecnologias relacionadas, como mixnets, fornecem uma demonstração de que a verdadeira metafísica do trabalho de filosofia hoje tomou corpo técnico, com tecnologias blockchain postuladas não apenas como uma infraestrutura financeira alternativa, mas como o sucessor técnico da dominação política do Vale do Silício e dos império americano. Embora o criptoanarquismo não tenha livros acadêmicos ou muito no sentido de análise filosófica acadêmica, o criptoanarquismo é o único momento filosófico genuinamente novo do século 21 e, como tal, merece atenção cuidadosa. Seus avisos de como a tecnologia digital poderia ser usada como forma de controle são obviamente verdadeiros, mas o que é menos óbvio é que, como Stiegler, eles acreditavam que as técnicas poderiam ser usadas contra o controle, para abrir o futuro em vez de fechar o futuro.

Acredito que haverá uma guerra dentro da tecnologia do computador para tirar o poder dos algoritmos e da criptografia do Vale do Silício e colocá-los nas mãos das pessoas, semelhante a como a Igreja finalmente enfrentou uma guerra quando seu controle de leitura e escrita foi perdido na Europa devido à Reforma e ao Iluminismo. Como os cypherpunks, os primeiros reformadores e hereges da igreja cristã eram vistos como insanos e impotentes. No entanto, dentro de uma geração, esses grupos colocaram o poder da leitura e da escrita nas mãos de pessoas comuns e acabaram com a Igreja. Poderíamos imaginar um paralelo contemporâneo, onde os cypherpunks colocam o poder da programação de computadores nas mãos das pessoas? O que isso significaria para a política global?

Há uma estranha ironia na história que, justamente no momento em que algo é mais poderoso, desmorona. O mesmo pode acontecer com a visão de “hipercontrole” criada pela pandemia. Em termos práticos, a tentativa dos criptoanarquistas de amarrar a totalidade digital através dos grilhões da criptografia pode fornecer o horizonte aberto necessário para uma ordem mundial que está enfrentando o colapso e fornecer o esboço de uma alternativa descentralizada. No fim do Ocidente, a criptografia poderia ser um caminho a seguir em um mundo sem um princípio orientador? Uma saída para o pandemônio e a pandemia? Na verdade, pode ser a única maneira de se libertar da estabilidade artificial e permitir que haja um mundo sem nenhum princípio orientador, chamado por Reiner Schürmann, o “arche”. Isso permitiria a “an-arquia”, um mundo sem princípios pré-definidos e, portanto, um mundo onde cada cultura e cada povo pudesse finalmente tomar seu destino em suas próprias mãos. Acredito que este mundo, onde podemos criar nossos próprios princípios e futuro com base em uma forma de técnicas sem controle, é o significado de criptoanarquia.

Restam duas perguntas. Primeiro, como os criptoanarquistas são um pequeno movimento de uma minoria, essas técnicas de criptografia podem ser usadas como técnicas revolucionárias para todas as pessoas? A pandemia adere a todas as pessoas, não apenas a uma pequena minoria da elite técnica de alta potência. Por fim, com os Estados Unidos à beira da guerra civil, o sistema financeiro global em crise e a metafísica europeia se revelando em estado de paranóia senil, o que significa para a China o novo momento criptoanarquista, o outro grande eixo da civilização humana? Essas perguntas são para você responder.

  • Esta é uma transcrição de uma palestra de Halpin dada à Academia Chinesa de Artes em 22 de novembro de 2020 na “The Web of Phronesis”, a Quinta Conferência Anual da Network Society. Um vídeo da palestra pode ser encontrado em: https://vimeo.com/577087741 .

Fonte: Agorism in the 21st century: a philosophical journal


Alguns pontos que devem ficar claros para quem participa do movimento
A Necessidade de uma Crítica Radical à Tecnologia

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